Nada
Tudo pode ter vindo do nada.
Mas hoje sou só nada.
Sinto como se cada molécula do meu corpo
fosse apenas nada.
Feitas de nada e produzindo nada.
Talvez elas sejam assim mesmo.
Mas refiro-me ao nada como ausência.
Como se tudo feito por mim até hoje
fosse a maior de todas as mentiras.
Nada, portanto.
Nada feito de verdade.
Nunca deveria ter existido,
tamanha farsa na existência.
Mais do que tudo,
sinto a materialidade do nada.
Sim, o nada prepondera em mim
e é palpável, feito de matéria viva,
embora dormente, em morte aparente.
Talvez eu me sinta como a aranha
paralisada pela ferroada da vespa algoz,
carregada para um buraco na terra,
assistindo aos ovos do parasitóide
eclodirem no próprio abdômen.
Sentir-se comido vivo por larvas estranhas,
sem dor, só com desespero e impotência.
É o nada desfazendo-se em vida
no tudo cósmico e mineral,
tal qual se originou.
Demolição
O que fizeram com os nossos sonhos.
É como acordar com barulho de demolição
depois de sonhar com a casa nova,
e o que está sendo demolido,
é a nossa própria velha casa.
Com todos os seus defeitos,
canos velhos e enferrujados,
torneiras que cospem água vermelha,
fios podres e desencapados,
que não suportam mais.
Soltam faíscas quando se tocam.
Fervem e ficam incandescentes,
prestes a por fogo em tudo,
cansados de tanta corrente,
demandas que se multiplicam.
Uma casa com fundação de mentiras,
para esconder a verdade de vergonhas.
Uma casa cheia de dor e miséria,
para a fartura de poucos,
mas que sonhou em abrigar alegria.
Queria se reformar,
sabia como fazer.
Mas não deixaram.
Sonhos coletivos
não são para serem realizados.
O que fizeram com nossos sonhos?
(R)Evoluções em espiral
Atônito observo as espirais
E, espiralmente, movimento-me,
perdendo a referência e a direção.
Busco conduzir a rota,
analisar a trajetória,
incapaz de saber o que restará
depois que os furacões passarem.
Em desespero, tentam frear a espiral,
nada sabem sobre relatividade,
travam aqui e ali, pensam ter sucesso,
mas não notam a espiral maior que os conduz,
nesta fractal caótica e imprevisível,
ainda longe de estabilizar.
Revoluções estão em curso
na introspecção de cada um.
Frente às telas hipnotizantes,
nasce uma nova humanidade.
Crítica e frágil, infante,
busca aprender sem conhecer,
termina perdida e dominada.
A sociedade líquida que evapora,
bases frágeis não sustentam
o peso da unitarização do pensamento,
massificado pela manipulação.
Há tempo para reforçar a estrutura,
ou a ruptura reordenará a sociedade.
Girando em espirais aceleradas,
sinto só vertigem e só, por enquanto.
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