Fernando Andrade entrevista o escritor Ulisses Maciel

Ulisses Maciel - Fernando Andrade entrevista o escritor Ulisses Maciel

 
 
 
 
 

Fernando Andrade: Beckett talvez tenha sido o único escritor do século vinte, que não falou dos desastres do século, como guerras, intolerância,de forma clássica e literal.
Preferiu o absurdo da linguagem esbarrar na estupidez humana, falando de solidão, incomunicabilidade, e outras questões? Fale um pouco disso no seu ensaio sobre o autor.

Ulisses:

O que eu busco destacar no ensaio são justamente os traços sócio-históricos na escrita beckettiana, dando ênfase à forma como o escritor deixa reverberar, em seus textos, os males do século XX. Dessa forma, aponto na direção contrária ao clichê de que a escrita de Samuel Beckett lide com um absurdo encerrado em si mesmo. Na minha opinião, poucos escritores nos colocam diante de uma atmosfera tão tensa e tão verossímil em termos de representação da realidade, quanto ele. Não quero dizer com isso que Beckett possa ser associado ao que a tradição convencionou classificar como realismo. Como analiso no ensaio, o realismo de Beckett está às avessas e posiciona o leitor como coabitante de seu mundo ficcional, tirando-o da posição de simples observador. James McNaughton, em seu livro Samuel Beckett and the Politics of Aftermath, diz que Watt poderia ser considerado, salvo as proporções, o romance de guerra beckettiano. Um trecho que exemplifica bem ao que McNaughton se refere é a cena em que Sam, o narrador, descreve a imagem de um homem ferido por arame-farpado, sendo devorado por ratos, enquanto sangra até a morte sem que ninguém pudesse atender aos seus gritos por socorro. Uma cena que nos remete aos campos de batalha da Primeira Grande Guerra, mas que também pode estar relacionada a outros eventos traumáticos testemunhados pelo autor. A exemplo da Guerra Civil Irlandesa em 1926 e de sua participação no Glória SMH, grupo de resistência à invasão nazista da França.

Nesse sentido, é importante pensarmos que a incomunicabilidade, a solidão, a estupidez humana não se apresentam como estados isolados de um contexto político, filosófico e histórico. Não podemos naturalizar tais características como elementos indissociáveis da existência humana, como nos faz acreditar a ideologia capitalista, nem mesmo em Beckett. Em Watt, é possível observar como as relações humanas são dadas artificialmente, de modo a atender os mandos e desmandos de um ordenamento social vazio, repleto de cinismo e hipocrisia, uma espécie de micro representação crítica da sociedade. O que ocorre, muitas vezes, é que o leitor condicionado à estrutura pedagógica do romance burguês ou do romance naturalista tende a estranhar a estética dos extremos que encontramos não apenas em Watt, mas em tantos outros romances de Beckett. O cerne de meu argumento no ensaio está em tirar o foco da estranheza que o leitor habituado à linearidade do romance tradicional identifica como sendo o absurdo da linguagem. O absurdo para mim parte da realidade histórica vivenciada por Beckett, e sua aparente incomunicabilidade está mais próxima da posição de Seligmann-Silva quando escreve“Não existe discurso que esgote a dor, não existem palavras que recubram a “experiência” de Auschwitz, não existe explicação para a animalização do homem” (2003, p. 15), do que a proposta teórica que o identifica como o autor de uma linguagem absurda e puramente autorreferencial.

Fernando Andrade: A religião para o autor parecia ser uma vácuo do homem perante o absurdo da vida tão remediada pela fé em Deus. A Espera para ele era quase uma sagrada religião, onde a linguagem podia sondar, investigar, sobre o irracionalismo da barbárie humana. No seu ensaio como você tratou disso? Comente.

Ulisses:
Eu me recordo de apenas duas menções de cunho religioso em meu ensaio, mais especificamente, na citação em que a Sra. McCann acerta uma pedrada em Watt, por este, supostamente, ofender as suas tradições católica e militar, e na citação de encerramento, quando o Sr. Case, de maneira irônica, diz ao Sr. Nolan e ao Sr. Gorman: “E eles ainda dizem que Deus não existe”.
Dito isso, a relação de Beckett com a religião é conhecida. Ele simplesmente não tem uma religião. Ou melhor, o cristianismo, pode-se dizer, ocupa uma posição temática de certa relevânciaem várias passagens de seus livros, mas, no meu ver, isso se dá em maior parte para explorá-lo enquanto elemento de “ridicularização” da sociedade representada pelo autor, e não podia ser diferente. A Irlanda de Beckett é um país extremamente religioso, e sustentava um embate entre protestantes e católicos que levaria o paísà divisão, e isso, para ele, representava um grande atraso. De tal sorte, que ao ser questionado se retornaria para seu país durante a Segunda Guerra, ele respondeu preferir a França em guerra à Irlanda em paz. Sua mãe, Maria (May) Beckett née Roe, figura controversa na vida do autor, também parece carregar parte da responsabilidade na aversão que Beckett alimentava em torno do Cristianismo. Vale lembrar, ainda, que seus livros foram inicialmente censurados e, em seguida, banidos da Irlanda sob acusação de conter conteúdo ofensivo e pornográfico.

Em Watt, mais precisamente, a religiosidade surge como elemento de ênfase à hipocrisia pautada em costumes vazios, como eu disse anteriormente. Isso aparece muito notadamente no trecho final do livro.

No ensaio sobre Watt, eu não trato precisamente da espera enquanto tema central, talvez, se não me falha a memória, tangencio esse assunto tão caro à literatura beckettiana, principalmente quando nos referimos as famosas peças Esperando Godot e Fim de Partida. Em uma abordagem bem superficial, podemos dizer que a espera é uma forma de se ocupar o tempo. Eu discordo, por exemplo, da tese de que Esperando Godot seja uma peça “em que nada acontece duas vezes”. Acontecem uma série de eventos que nos levam a pensar o papel do homem comum em nossa sociedade. O que me remete muito à música “Pedro pedreiro” de Chico Buarque. A vida de Pedro narrada na canção de Chico não se difere tanto dos dilemas levantados por Vladimir e Estragon, quanto da relação de interdependência entre Ham e Clov. Acredito que Beckett, por exemplo, representa Godot não como uma entidade divina,– visão de alguns críticos, mas como uma espécie de projeção de um ideário sempre pautado no futuro, na expectativa de que algo aconteça e nos coloque em uma posição mais desejável do que a que ocupamos no momento presente, e, assim, ausentamo-nos da vida enquanto imanência dos fatos que nos afetam e deixamo-nos de experienciar a materialidade do mundo.

Fernando Andrade: Os personagens do autor não parecem perdidos numa zona do pensamento tão abstrato, eles parecem reagir de forma até concreta às injustiças que são perpetradas pelos outros. Watt estreita esta caminho. Explique.

Ulisses:
Watt é o primeiro esforço de Beckett, talvez o segundo, se contarmos o romance Dream of Fair to Middling Women escrito em 1932, no qual o irracionalismo de que trato em meus textos mais recentes pode ser identificado enquanto elemento formal da escrita beckettiana. Em Murphy, o tema também aparece, mas não tanto na forma. Enfim, de antemão, é importante mantermos em mente que o conceito de irracionalismo que pego emprestado do filosofo húngaro Georg Lukács não remete a nenhum grau de irracionalidade, mas o contrário. Em uma espécie de síntese do pensamento lukácsiano, o termo deve ser compreendido enquanto uma racionalidade desprovida de ética, e portanto, sem o freio moral capaz de nos conter quando diante da face negativa de nossas ambições. O exemplo máximo dessa experiência se daria, segundo o filosofo, no nazifascismo europeu e nos desdobramentos que levaram ao planejamento e execução da morte de milhões de pessoas em fábricas de extermínio cuidadosamente arquitetadas.

Sobre as injustiças, eu não sei se as classificaria dessa maneira. Watt e tantos outros protagonistas beckettianos não reagem aos maus tratos que recebem de outros personagens. As vezes, me parece que o narrador busca alimentar no leitor um sentimento de impotência. É como se a passividade de seus protagonistas alimentasse um desejo estéril de reação por parte do leitor. Estéril, porque não há nada a ser feito. Os eventos na estação ferroviária exemplificam, em certa medida, o que estou tentando dizer. Mas o exemplo mais claro pode ser encontrado em The end (1981), quando, ao ser apedrejado por uns meninos que brincavam na rua, um dos personagens, ao ser abordado por um guarda, responde “estávamos exatamente como a natureza nos tinha feito e os garotos também” (2006, p. 67), naturalizando o estado das coisas e reforçando, de certa maneira, esse sentimento de impotência do leitor diante da indiferença do protagonista que se arrasta pelo mundo.

Fernando Andrade: Como seria a morte para Beckett? Este fim da expressão da linguagem, como ele deveria pensar o fim?

Ulisses:

Samuel Beckett morreu aos 86 anos de idade e, apesar de ter vivido uma vida pouco monótona, a morte, apesar de estar sempre à espreita, é algo raro nos livros do autor. recordo-me de duas histórias nas quais o protagonista, efetivamente, morre. O curioso, talvez, esteja no fato de que em ambas o suicídio tenha sido o modo pelo qual os eventos ocorram. A primeira é Murphy, protagonista do romance homônimo de 1939 e a segunda, o protagonista de The end, novela de 1981 que citei anteriormente. Em meu texto Samuel Beckett e a Estética de uma existência para morte, de 2017, eu levanto uma possível relação do autor com o niilismo existencialista, e não é difícil imaginarmos que em grande parte de seus textos Beckett talvez esteja lidando com o paradoxo filosófico de Albert Camus, quando, no livro O Mito de Sísifo (1942), o pensador coloca como único problema filosófico o suicídio. “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida” (2010, p. 17). Eu, no entanto, reconsiderei boa parte dos argumentos que trouxe no artigo supracitado. Hojé, eu acredito que caso Beckett tivesse de decidir entre a vida e a morte, e talvez ele tenha ponderado a respeito algumas vezes ao longo da vida, a resposta está dada. Beckett morreu velho. Eu ainda complementaria que seus romances, a partir da trilogia, também respondem à pergunta. A vida sob uma possível perspectiva beckettiana seria um contínuo tentar e fracassar, de modo que possamos sempre fracassar melhor, já que a morte é algo incontornável a todos nós.

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