mônica vai Jantar (davi boaventura, não editora, 2019, resenha) por Guilherme Preger

Davi Boaventura - mônica vai Jantar (davi boaventura, não editora, 2019, resenha) por Guilherme Preger
 
 
 

O romance de Davi Boaventura é fruto de uma graduação em escrita criativa e recebeu várias indicações para prêmios literários.

O romance inteiro é centrado numa única situação: a personagem Mônica está se arrumando para um jantar de fim de ano de sua firma, quando seu “namorado marido” chega de surpresa em casa machucado. Ele admite que foi linchado por uma multidão quando foi pego se masturbando num ônibus público. O namorado de uma relação de quatro anos não dá maiores explicações sobre o ocorrido. Mônica está atrasada para o jantar da firma e também não tem tempo e vontade de esclarecer melhor o que realmente aconteceu.

Toda a história, se é que é história, se passa no preparo de Mônica para o jantar. Ela começa tomando o banho e fazendo a toilette, depois vai escolhendo a roupa, passando a maquiagem, e finalmente saindo de casa para pegar o automóvel para ir ao jantar. Ela se atrasa bastante e o telefone a incomoda com dezenas de mensagens instantâneas, que ela não responde.

Formalmente, o romance é um verdadeiro “tour de force” para uma leitura “sem fôlego”: não tem um único ponto ou vírgula. Por mais de 80 páginas acompanhamos a arrumação de Mônica para seu compromisso, ao mesmo tempo em que reflete sobre sua relação com o namorado marido, como o chama. O surpreendente acontecimento a faz revisitar suas expectativas sobre a relação amorosa, sua convivência com um homem que, pouco tempo antes, julgava compreender. De fato, a situação inusitada a perturba pela estranheza súbita assumida pela pessoa com quem convivia.

Não se trata, no entanto, formalmente de um fluxo de consciência, como alguns resenhistas afirmaram. O leitor tem acesso aos pensamentos de Mônica sempre em terceira pessoa.
Não é Mônica pensando em discurso direto. O fluxo de consciência, essa técnica modernista, algo incomum na prosa contemporânea, supõe uma escrita em primeira pessoa em “tempo real”. No caso do romance de Boaventura, o narrador é “externo”, observando tanto a arrumação da personagem, como seus pensamentos interiores.

É antes um fluxo narrativo que se assemelha a alguns trechos do Livro dos Prazeres de Clarice Lispector, sobretudo suas folhas iniciais. Mas esse fluxo narrativo ininterrupto, sem pausa para a respiração do leitor, pela ausência de pontuação, e começando e terminando com palavras em minúsculas (não há maiúsculas, inclusive no título da obra), acaba por simular uma espécie de “plano-sequência” literário. Essa técnica cinematográfica se dá quando uma câmera segue sem cortes os personagens em seu trajeto pelo filme. No caso deste romance, os movimentos da protagonista são tão importantes quanto seus pensamentos ou, colocando em outros termos, movimentos e pensamentos estão unidos, conformados uns aos outros.

E, de fato, o narrador externo dá espaço para explorar tanto o comportamento exterior quanto a interioridade de Mônica. Este é um dos pontos fortes do romance. Ela se atrasa para o jantar não só porque está aturdida, mas porque talvez não queira mais ir. Ela também se questiona se deve ou não continuar seu relacionamento. Ela não sabe realmente responder a essas questões. O romance é então sobre essa “indecidibilidade” da personagem: ir ou não ir ao seu compromisso, terminar ou não sua relação.

E é também sobre a estranheza do outro que julgava conhecer. De repente o homem com quem convivia se torna um desconhecido e essa opacidade da alteridade acaba por transbordar para dentro de sua própria identidade. Ela já não sabe se o amava ou não, se a questão é moral, de condenação ao seu ato, ou se é afetiva, de ela se tornar alheia à sua (dele) existência.

A narrativa em plano-sequência, sem pausas, é menos de uma história que está sendo contada e mais de uma situação sendo vivida e acompanhada em “tempo real” pelo leitor. É claro que esse “tempo real” é inteiramente simulado, um elemento construído pela ficção literária. A interioridade da personagem aberta pela narrativa exterior permite o acesso a algo que o cinema não permitiria. No entanto, Mônica não consegue verbalizar seus sentimentos, de modo que uma voz em primeira pessoa seria inútil. Assim como Mônica não consegue conversar com seu parceiro sobre o acontecimento, também não consegue expressar ao leitor de forma inteiramente coerente suas reflexões.

Então não se trata de um romance inacabado nem de uma narrativa aberta. Não é caso do leitor se perguntar sobre as “lacunas” da narrativa, ou de tentar preenchê-las. A falta de resolução da narrativa vem do fato de ser uma situação que permanece irresolvida na vida mesmo. O relato é então o recorte do fluxo de uma existência que segue seu curso. Mônica deve lidar com as consequências do acontecimento. E o leitor deve refletir sobre o que esse extrato existencial diz respeito à sua própria situação de vida.

 

Guilherme Preger 300x225 - mônica vai Jantar (davi boaventura, não editora, 2019, resenha) por Guilherme PregerGuilherme Preger (@gfpreger@piupiupiu.como.br) é engenheiro e doutor em Teoria da Literatura (UERJ). É autor de Capoeiragem (7 Letras, 2003), Extrema Lírica (8 e meio, 20140 e Fábulas da Ciência (Gramma, 2021). É organizador do coletivo literário Clube da Leitura Raiz (https://oclubedaleitura.wordpress.com/).

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