Fernando Andrade entrevista o escritor Benilson Toniolo

Benilson - Fernando Andrade entrevista o escritor Benilson Toniolo

 
 
 

FA – O universo fabular é muito diferente de um livro reportagem, ou documentário. A linguagem é um instrumento maravilhoso que traz ao leitor toda a arte encantatória do lugar criado. Queria que você falasse desta minha questão no seu livro.

BT – A linguagem, mais do que mostrar, insinua – por isso é bela e instiga a gente. É preciso que, mais do que dita, seja sugerida. No caso da história que se passa em Barra-dos-Meninos, que é ambientada em um lugar fictício, é preciso deixar que as imagens se façam sozinhas, sem que seja necessário mover e nem explicar nada para que elas se construam. A beleza das coisas paradas. Como os diálogos, que vão desnudando a alma dos personagens, seus vícios e suas virtudes. Penso que é isso. Uma linguagem sugerida, mais do que narrada. A ideia é que o leitor sinta na pele o calor aterrador do final da manhã, prove o gosto das frutas frescas na feira e consiga visualizar a sombra da jaqueira, cujas folhas o vento balança no final da tarde – mas isso tudo de forma sugerida, sem submeter o leitor a períodos longuíssimos e detalhistas ao extremo. De forma sutil, mas contundente e clara. E se puder ser de forma poética, melhor.

FA –  Há certos antagonismos na cidade por parte da igreja do pastor em relação aos índios. Esta é uma questão que a antropologia ainda estuda, “civilizados” contra os “selvagens”. Queria que você falasse um pouco sobre isso no seu livro.

BT – Fica claro que a Igreja do Amanhã é uma igreja evangélica neopentecostal contemporânea, ou seja, desprovida dos ritos e dos códigos que permeiam as instituições cristãs tradicionais surgidas depois da Reforma de Lutero, que por sua vez se consolidaram ao longo dos séculos por meio do estudo da Palavra de Deus, da pregação do Evangelho e de conceitos morais e éticos bastante sólidos, e que, inclusive, adaptaram seu discurso ao Cristo do Novo Testamento. Já a Igreja do Amanhã, personificada pelo pastor Divino e sua esposa, é uma alegoria a essas entidades neopentecostais que surgem diariamente no Brasil, e que muitas vezes, originadas por dissensões diversas enfatizam, em seus discursos de convencimento, a figura do Velho Testamento – o Deus que pune, que castiga e elimina os que não seguem seus ensinamentos – para impor seus dogmas e interesses próprios. Vale lembrar que o livro todo pretende ser uma metáfora da formação do povo brasileiro, o que significa dizer que a igreja, nas figuras do pastor Divino e sua esposa, Soledade (os nomes guardam relação com a destinação dos personagens na obra), pode ser entendida como a imposição da fé cristã exercida sobre os povos originários no período pós-descobrimento. Não podemos nos esquecer que os convertidos são convocados a “servir o reino de Deus”. É trabalho, portanto.

FA – Encontrei certa tendência ao humor não de forma descarada, porém, sutil. Na expressão de certas palavras, como você tece todo clima do cenário, da trama. É cabível minha impressão. Comente.

BT – O humor é fundamental, sempre, e em “Barra-dos-Meninos” ele está presente, principalmente, na figura do Buiú, o personagem responsável por inventar histórias e contar casos por vezes nunca acontecidos. É dele o papel de emprestar leveza e, como você disse, humor durante as conversas com seus pares, tanto no bar quanto na praça da Senadora. Buiú não chega a ser o João Grilo do Auto da Compadecida, não tem gênio para tanto, mas pode ser entendido como o liame que une as histórias dos outros personagens. É o elemento folclórico, fofoqueiro, inventador de mentiras, despojado e nem sempre com boas intenções. Por vezes, por detrás do humor e da picardia, está a tentativa se dar bem, de preferência sem que os outros percebam. Um personagem delicioso. Penso que, no livro, o humor está centrado todo nessa figura.

FA – De que forma você se aproxima da geração dos autores nordestinos como Graciliano Ramos, José Lins do Rego. Ou Não. Comente semelhanças ou diferenças.

BT – Ainda que não tenha nascido no Nordeste, sou muito próximo dessa região em razão do fato de ser filho de um alagoano. Meu pai era de União dos Palmares. Minha identificação com a cultura nordestina sempre foi muito presente, mas somente de uns tempos pra cá é que ela começou a aparecer na minha literatura. “Barra-dos-Meninos” foi toda concebida depois de uma viagem que fiz a Sergipe, por ocasião da minha posse em duas Academias de Letras para as quais fui convidado em 2022. A imagem do rio Vaza Barris, do rio Sergipe e do centro histórico da cidade de São Cristóvão se fixaram em minha mente e em meu coração de maneira definitiva. Ainda que nascido no estado de São Paulo, minha cidadania é nordestina. Faço questão de frisar essa minha condição e todo esse ambiente se faz presente em minha obra, principalmente pela leitura diária que faço de folhetos de cordel dos poetas contemporâneos. A influência é toda essa. Quanto aos autores que você nomeou, não considero que minha obra possa ser relacionada a uma geração. O estilo de Graciliano é árido, desértico, duro, seco e cortante. Um pouco como ele, com aquela história de “palavra foi feita para dizer e não para brilhar como ouro falso”. Não vejo influência do velho Graça no que escrevo – até porque são regiões geográficas diferentes. Ele na caatinga, eu em um lugar que mais se assemelha à zona da mata, talvez. Lins do Rego é um pouco mais prolixo, uma literatura mais úmida, mais elaborada e sensual. Fico lisonjeado e surpreso com o fato de você citar esses meus “conterrâneos” quando faz essa pergunta, mas não vejo semelhança a partir do Barra-dos-Meninos. Tenho por eles profunda admiração, mas não posso querer estar na mesma prateleira. Eu não alcanço.

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