Fernando Andrade entrevista o escritor Fernando Rinaldi

Fernando Rinaldi - Fernando Andrade entrevista o escritor Fernando Rinaldi

 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE. Teu romance tem uma caráter polifônico, onde muitas camadas de sentidos vão aparecendo com dobras de tempos e espaços em espirais. Foi muito complicado criar esta trama tão rica e cheia de significados ambíguos. Comente.

FERNANDO RINALDI. Dueto dos ausentes é um romance feito de duplos, duplicações e espelhamentos. Ele começa com a história de um pai que perde o filho e que produz uma segunda história, a de um filho cujo pai não deixa marca alguma em sua vida e que não se apresenta a ele senão como pura falta. Lidando com suas ausências, pai e filho (Hélio e Heitor) escrevem sobre si e ficcionalizam o outro (Élio e Eitor), de modo que são tanto narradores de si quanto personagens do outro. Essas duas vozes acabam se tornando, então, quatro narrativas. Para que essas frentes não se confundissem, tive o desafio de encontrar um estilo diferente para cada uma delas. Nos diários de Hélio, temos uma voz em primeira pessoa que busca ser mais racionalizante, mas que se constrói e desconstrói a todo tempo, muitas vezes como forma de adiar o início de um enredo. Já sua voz ficcional, que conta a história de Eitor em terceira pessoa, é mais abrupta, seca e sumária. Nas lembranças de Heitor, uma linguagem mais caudalosa, lírica, com menos pausas e repletas de imagens. Por fim, a ficção de Heitor sobre o pai que não teve, Élio, guarda semelhanças com uma prosa mais realista, que busca a objetividade e a precisão. Mesmo com essa profusão de vozes, considero esse um livro que flerta com uma poética do silêncio, que também é uma condição para a produção de sentido e escancara o horizonte do dizer, essa perseguição quase sisífica do inexprimível.

FERNANDO ANDRADE. Um dos temas que você aborda é a psicanálise, esta relação entre falar e ouvir não é também uma composição melódica e sinfônica entre a arquitetura do romance, pois os personagens se mostram, mas camuflam muito, os afetos. Fale disso.

FERNANDO RINALDI. O romance coloca em cena narradores-personagens que têm de lidar com os limites da linguagem, e a psicanálise enquanto estudo do discurso e sua encenação está presente desde a primeira página. Hélio enfrenta dificuldades em clinicar depois de perder o filho e, além disso, sente que não tem mais a contribuir enquanto especialista na área: a paternidade. No seu passado como jovem psicanalista, precisa preparar uma palestra, a ser apresentada em Paris, sobre a influência dos estudos lacanianos no Brasil, mas à psicanálise como campo de estudo se sobrepõe a tirania do desejo quando ele acaba se apaixonando pelo jovem Hector. O livro também é bastante psicanalítico na medida em que ele é atravessado por temas como luto, busca de identidade, descoberta da sexualidade, desejo e projeção.

Inevitavelmente, então, o livro acaba tangenciando as relações entre literatura e psicanálise, e também entre literatura e música, uma forma de expressão artística que é tema e componente estruturante do livro. As palavras são sempre insuficientes e não chegam a dizer o indizível como eventualmente uma canção poderia? Ao mesmo tempo, atribuir palavras a uma experiência, seja no divã ou por escrito, significa sempre transformá-la? Vale lembrar que, no consultório psicanalítico, importam mais as falhas do discurso, os silêncios, as hesitações do que a fala coerente. Na literatura, o que não é dito é tanto ou mais importante do que o que se diz, e já no título quis transmitir a convivência entre o som e o silêncio, o que é desenvolvido em partes da trama – a mudez de Ísis após a morte do filho dela com Hélio e quando Elena perde sua disposição para cantar depois de quase se afogar no mar.

FERNANDO ANDRADE. Até que ponto a paternidade pode consentir com algum tipo de ausência, aí embutindo os afetos, os cuidados, e tudo mais. Comente.

FERNANDO RINALDI. Nesse livro, procurei pensar na criação como cocriação, ou seja, em sua dimensão dialógica. Pode parecer meio óbvio, mas é sempre bom lembrar que um pai ou uma mãe só se tornam pais a partir de um outro, seu filho, que se torna sujeito e pode nomeá-los como tais; assim como um escritor só se torna escritor a partir desse seu outro que (se) escreve. A alteridade existe tanto para fora quanto para dentro e, quando o objeto para quem direcionamos nosso afeto e desejo deixa de existir, a sua existência se acentua internamente, a ponto de poder ser recriada. A ausência é, aliás, sempre um conceito relacional, ou seja, tem a ver com um “dever-ser-presença”. Quando Hélio perde seu filho, Heitor vira Eitor para que Hélio possa procurá-lo; para Heitor, seu pai ausente só pode se chamar Élio, pois ele nunca será presentificado. Na medida em que somos sempre constituídos pela falta, esses narradores falam em nome daquele que não está mais, ou nunca esteve, mas que ao mesmo tempo os constituem. E esse jogo de presença e ausência da letra agá, que não tem som em língua portuguesa, representa graficamente como essas figuras se aproximam por meio da ausência.

FERNANDO ANDRADE. O tom que você deu à seu romance me lembrou aquelas peças russas cheia de sutilezas e subentendidos. Tem muito do seu romance um espaço cênico para prestarmos atenção a todas as entrelinhas do enredo. Comente.

Interessante a comparação, até porque o teatro é outra forma artística evocada com frequência no livro. Hector apresenta a peça La Demande d’emploi, de Michel Vinaver, e Hélio, enquanto está em Lisboa, assiste a uma montagem de Uma visita inoportuna, de Copi. Sabemos também que Thalia, mãe de Dóris, a amiga Eitor que estava no carro durante o acidente e que está em coma desde então, foi no passado uma atriz de teatro musical. De uma forma ou de outra, o que acontece em cena produz efeitos na realidade e vice-versa, como naquela velha concepção de que as sensações e pensamentos criados com artifícios podem ser mais intensos e verdadeiros do que o próprio real. Há sempre um quê de incomunicabilidade nas relações que, como espectadores de uma peça ou leitores de um romance, somos convocados a visualizar. E, nesse sentido, claro que o que fica subentendido também ocupa um espaço importante na construção do livro, como se isso fosse a argamassa das narrativas. Escrever ficção é, sobretudo, criar suas entrelinhas.

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