Fernando Andrade entrevista a escritora Giovanna Pinheiro Soalheiro

GIOVANNA SOALHEIRO PINHEIRO - Fernando Andrade entrevista a escritora Giovanna Pinheiro Soalheiro

 
 
 
 

Fernando Andrade. Frio-quente,  repouso-pasto, tourear, essas relações entre estados físicos do corpo animal existem como espelhamentos na sua poesia, em força latente, pulsional. Queria que você falasse sobre essa animalidade poética em seus versos.

Giovanna  Soalheiro Pinheiro. Penso que poesia é alteridade. A linguagem possibilita essa troca, esse colocar-se em outro lugar, ou inserir-se no espaço onde a língua e o corpo alheio estão. Nessa esfera, os bichos, assim como as plantas, têm muito a nos oferecer e a nos ensinar, principalmente sobre comunicação, afetos, partilhas, assentimento. Há também uma semelhança entre o que vejo neles e o que materializo na escrita. Ao mesmo tempo, o animal surge – o boi e outros seres – como vivente integrante de minha infância, das minhas referências: nos sonhos, no espaço aberto e natural, nas minhas escolhas políticas, alimentares. O boi-linguagem ainda pode conduzir o leitor a outros lugares imaginativos: à poesia bovina brasileira, à memória.

Fernando Andrade. A natureza está coesa na pedra, mas, no poema, a coisa se torna um tanto maleável, moldante à linguagem escrita. Como é esta transmutação do conceito ao sentido do verso? Comente.

Giovanna  Soalheiro Pinheiro. Quando produzo, penso primeiro nas imagens e no ritmo para o que desejo modular. Gosto de traduzi-los, de suplementá-los, de recolocá-los na linguagem conforme o sentido vai se elaborando. Penso muito por imagens, isso organiza a minha escrita, de certa forma. Nem sempre elas são o que são. Você cita, por exemplo, a pedra, que aparece em um dos meus poemas (ou em mais de um). E a pedra ali pode ser a pedra mesmo, mas pode apontar ainda para a relação entre homem e espaço, concreto e abstrato. Nesse sentido, deixo a tarefa ao leitor, que pode ler a pedra da forma como bem entender: como figuração, como realidade, como diálogo com outros escritores.

Fernando Andrade. A violência, em alguns de seus poemas, pode estar sendo muito trabalhada numa relação entre espelhos (modelos-imagens) e pensamento, ação e reação. Como trabalhou isso em seus versos?

Giovanna  Soalheiro Pinheiro.  A violência é um dos aspectos que, de fato, compõe o meu livro Olho de boi. É um tema incontornável por ser real, por nos atingir cotidianamente, por afetar nossos corpos. Em alguns poemas, ela surge a partir da relação animal-humano e animal-bicho, já em outros, como traçado da opressão praticada por sujeitos, Estados e sociedade contra muitos indivíduos. De 2018 a 2022, tivemos, nesse sentido, experiências muito assustadoras e ameaçadoras no Brasil. Não é preciso citar aqui quem oprime, quem violenta, e o que é oprimido. Mas é preciso dizer também que essas questões não estão impressas no meu projeto, não são tentativas de mapear a realidade. A relação na escrita se dá, portanto, por outros métodos, e um deles passa pelo olhar, como imagem, como gesto. Há violência, por exemplo, no poema “Só a bailarina dança?”, em “Um homem e uma pedra”, em “Breve notícia do escuro”, mas como percebê-la? Quem a pratica? Contra quem?

Fernando Andrade. O racional, como instrumento da lógica até cartesiana, contra a mudez das plantas, das pedras, do olho de boi fixo numa paisagem, fale um pouco disso.

Giovanna  Soalheiro Pinheiro. Há muito deixamos de ser sujeitos cartesianos, se é que em algum momento da nossa história isso ocorreu em amplitude. O que houve foi a construção de um pensamento em torno disso. Sim, pensamos, logo existimos. Até que ponto? Prefiro mesmo pensar as coisas (humanos, plantas, bichos, objetos) a partir das tradições afrodiaspóricas. O indivíduo em relação com, em expansão, como desencarnação, como constituição, como mudança contínua. Às vezes, isso está na minha linguagem, outras vezes, não. Há razão em tudo isso? Sim, mas como diluição, figuração. O olho do boi fixo na paisagem pensa (talvez seja o meu olho ou o seu), a planta não é um ser silente, objetos podem operar distintamente, o que depende da modulação dos significantes e dos significados pelos sujeitos que os pensam.

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