Fernando Andrade entrevista o escritor Fabiano da Mata

Fabiano da Mata - Fernando Andrade entrevista o escritor Fabiano da Mata

 
 
 
 
 

Fernando Andrade – Seu romance tem uma linguagem bastante maleável em torno do insólito, do absurdo, não é apenas no tema, mas também na forma, na expressão da escrita, tão caleidoscópica. Me fala de como você pensou este livro. 

Fabiano da Mata –  Acho que essa maleabilidade em torno do absurdo tem a ver com a relação entre o verossímil e o inverossímil, e por extensão, entre tempo objetivo e subjetivo. 

Olhando para a questão da verossimilhança, percebe-se que é uma história que começa a partir de um fato comum: a chegada dos novos vizinhos, e quais mudanças isso provocará. Ou seja, já se inicia com a primazia de elementos da vida comum, o que não será diferente com relação aos diálogos, que são muito prováveis de acontecer na vida real. 

Sobre a inverossimilhança, esta já se mostra, por meio da narrativa, no desenrolar do fato acima e de outros: há um narrador-personagem quase onisciente que sofre com as situações ao mesmo tempo em que as narra de um ponto de vista privilegiado, e que realiza um certo manejo dos diferentes tempos.  

Quanto à expressão caleidoscópica, suponho que se deve a uma narrativa em primeira pessoa que vai se realizando conforme o fluxo de consciência do protagonista, este vai reagindo conforme situações-problemas e certas temáticas, expondo seus desejos, sentimentos, valores, pensamentos etc. 

Fernando Andrade – A vida para seus personagens parece um tanto aflita, perigosa. Há uma espécie de espreita de acontecimentos que podem gerar conflitos. Queria que você falasse do narrador nesta situação e dos demais personagens como a Maria?

Fabiano da Mata – Realmente os personagens se veem tensionados em razão de possíveis conflitos, por exemplo, entre Ana e Jorge, Gesualdo e Lurdinha, Maria e Armando. No entanto, é com André que essa tensão se escalona a níveis mais altos, sobretudo, em contato com Maria. Há em André uma tensão, digamos, existencial. Já com idade avançada, se vê em débito com a vida. A vida para ele é um credor antigo. Procura então ser o André dos atos benevolentes. Acha até mesmo que por meio do justiçamento quitará em grande parte a sua dívida. É através desses atos de “pagamento” que se vê diante de si mesmo, ou seja, dos seus imbróglios pessoais: há um passado presente longe de ser resolvido, retratos precisam ser desvelados. Maria será o seu ponto de intersecção, a sua questão maior. Se olharmos bem, a relação que estabelece com ela diz muito da sua maneira de elaborar os problemas. 

Fernando Andrade – Você acha que pode ser enquadrado por algum estilo de realidade mágica, fantástica, muito em voga pelos autores latino-americanos? Comente. 

Fabiano da Mata – Acredito que se relaciona com algum estilo de realidade mágica, no entanto, a parte “mágica” se aproxima de um delírio, o que dá um peso maior à “realidade”. O que há é um caminhar sob uma memória patogênica que tem como tônica uma experiência traumática. O realismo também se dá no diálogo com temáticas sociais, sobretudo, nas questões de gênero, classe, educação e religião. 

Podemos perceber no que tange aos tempos e espaços uma “magia” não fantástica, relacionada a um imaginário de memória que tem os pés na vida comum. Apesar do flerte com o absurdo, a história que vai se desvelando é significada em diálogo com a biografia dos personagens.

Fernando Andrade – O seu livro trabalha muito a ausência do afeto, naquele estado de carência muito trabalhado na psicanálise onde personagens procuram, mas não acham laços, lastros, para sua completude. Fale disso.

Fabiano da Mata – Pensando-se a partir de André, podemos realizar a seguinte leitura: essa não completude ou falta se dá em relação a um real abandono, que se mostra sintomaticamente pela via do medo e da desconfiança: encontra todo um mundo lá fora que o justifica. O Eu, aparentemente adaptado a essa falta, ainda pede “colo”, deseja o retorno sempre adiado ao “ninho” perdido, rompido de modo traumático. Por isso a falta enlouquecedora a requerer um cuidado hiperbólico, fixante, até mesmo mortífero (uma dose que envenena, que nunca alimenta). André joga, pela via do simbólico, com os perigos da perda do Eu, realizando o seu próprio luto. Realiza aproximações (felicidades de artífice), mas não sem estranhamentos: há a figura fantasmagórica de um enorme outro em Maria. André se equilibra sobre uma linha tênue, realizando um ato sempre novo e repetido de recordar.

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