Fernando Andrade entrevista o poeta Bernardo Caldeira

Bernardo Caldeira - Fernando Andrade entrevista o poeta Bernardo Caldeira

 
 
 
 
 
 

Fernando Andrade – Prova de vida fala da vida não de forma tão biológica, mas do que a vida é feita, memória, escrita, equívocos, acertos. Queria que você falasse de certa ironia do título com relação aos poemas.

Bernardo Caldeira – Sim, é verdade que o título comporta uma ironia com relação à ideia de se apresentar fisicamente, biologicamente, perante alguém ou uma instituição, como o INSS; isso é posto de cara logo no primeiro poema. Há uma dialética nesse sentido porque o que se apresenta é justamente a ausência de um corpo físico. Por outro lado, o livro de algum modo leva essa ideia muito ao pé da letra, se pensarmos no registro da corporeidade, tanto do livro quanto do que nele eu coloco. Ora, o que é um corpo, para além da mera carne e osso, o que é um corpo animado pela Palavra, e até que ponto as próprias palavras fazem, em si mesmas, um corpo, um para-corpo? É conhecida a frase de Barthes dizendo que a linguagem é uma pele, que esfregamos nossa linguagem no Outro. Então, nesse aspecto, um livro, um poema, constituem corpos cuja matéria são as palavras – e a palavra é matéria, quer queiram os físicos ou não. De modo que a ironia, a meu ver, é a de que uma prova de vida não prova que alguém vive, quer dizer, que está realmente vivo, mergulhado, de corpo e alma, na grande aventura de existir; e o Prova de Vida é, num sentido literal, a prova, o testemunho, desse Outro corpo, dessa existência investigativa e poética – de uma ‘vida examinada’, como dizia Sócrates, a única que vale a pena ser vivida. É, literalmente, o meu corpo, a minha vida, que está no livro – amorte inclusa.

Fernando Andrade – Vida e morte são faces complementares de uma mesma moeda, a poesia é um excelente caminho para colocar estas duas faces frente a frente com tanta beleza e intensidade. Você tem alguns poemas que tangenciam ou falam disso. Comente.

Bernardo Caldeira – Quando eu falava na pergunta anterior da vida examinada, desse mergulho na aventura de existir, estou falando de amor, de Eros, no sentido lato da palavra, de amor ao saber, como quer a Ciência, a Filosofia e até mesmo a própria Mística – e nisso se inclui um amor à própria morte, ao inefável, ao mistério que é morrer (e, consequentemente, viver). É um amor amplo, um interesse por todas as coisas do mundo, boas ou más, cognoscíveis ou não – algo da ordem do divino mesmo: amo tudo o que há como se eu mesmo tivesse criado o universo. E odeio tudo na mesma medida.

Mas o que aparece de forma mais explícita no livro é a experiência estrita do amor, do amor a um ser específico entre todos os outros seres do mundo, o amor como uma experiência revolucionária, causa de uma expansão da própria vida, e cuja perda – tragédia maior – revira-se em morte, em destruição total do corpo e da alma, quando aquela potência vital se torna subitamente potência de destruição, ruína. Por outro lado, mesmo essa potência de destruição é criadora: não à toa, “Amorte” (nome do capítulo ao qual você se refere) é tema de tantos poemas na história da humanidade, desde Safo até Pizarnik. Assim, Eros e Tânatos dançam como o velho deus hindu: “quem me vir dançar/ verá que quem dança é Shiva/ quem dança/ quem dança é Shiva/ quem me vir/ já não me verá”, cantou, magistralmente, Gilberto Gil (que usei de epígrafe para o livro).

Fernando Andrade – O inesperado; o desconhecido é colocado por você como elo ou ode à imprevisibilidade do destino ou da vida. Prova de vida seria uma afronta ou confirmação desta ideia. Fale disso.

Bernardo Caldeira – Penso que seria muito exatamente uma confirmação dessa ideia, uma ode à vida enquanto questionadora e criadora de si mesma, de não obediência a padrões e regras preestabelecidos; nesse sentido, o Prova de Vida é o avesso da prova de vida, da institucionalização do corpo, do seu cadastramento num sistema social com idade, sexo e nome definidos; é um atravessamento da determinação do ser pela contingência do encontro com a alteridade, é o oposto de uma carteira de identidade. Na epígrafe do capítulo “Ágora”, cito um verso de Walt Whitman que condensa bem essa ideia: “Eu me contradigo? Pois muito bem, me contradigo./ Eu sou vasto, contenho multidões”. Não sei o que pode sair das multidões que me habitam, e essa imprevisibilidade é libertadora.

Fernando Andrade – De que forma a psicanálise atravessa seu livro falando de certas pulsões da vida e da morte, falando de acaso, ou fatalidade. É um livro com este viés psicanalítico. Comente.

Bernardo Caldeira – Bem, como sou psicanalista e tenho, como Lacan, uma paixão pelo real – por tudo aquilo que no mundo falha, fracassa, por tudo aquilo que, em suma, não é mundo –, é inevitável haver reflexos disso em minha escrita. Mas essa paixão vem bem antes de eu estudar psicanálise; na verdade, ela começa quando eu, ainda criança, desenhava em meu colchão astronautas vestidos de escafandro e ficava horas olhando para as estrelas sem entender porque elas existem; depois, na puberdade, me tornei goleiro, uma espécie de anti-herói, o avesso do gol, tão desejado por todos; depois, na adolescência, me apaixonei por astronomia e comecei o curso de física – que larguei pra fazer psicologia (pois entendi que a tal “a teoria de tudo” não englobava tudo, tinha uma falha que eu queria, precisava, explorar – nomeadamente, o sujeito do conhecimento); e, uma vez formado, percebi, através do estudo aprofundado de psicanálise (articulado especialmente à física e à filosofia), que a poesia era tanto o seu horizonte quanto o meu – que tudo que eu havia sido era uma tentativa de chegar finalmente à poesia. Eu sempre fui poeta, mas não sabia – poeta nesse sentido do interesse, do acolhimento, da consideração e articulação de tudo o que há; a poesia é meu modo de ser goleiro, físico, filósofo, analista, astronauta… Porque, no fundo, no fundo, não sou nada; fora isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo…

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