Fernando Andrade entrevista o escritor Lucas Turino

Lucas Turino - Fernando Andrade entrevista o escritor Lucas Turino

 
 
 
 
 
 

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Fernando Andrade – A questão de classes perpassa seu livro como uma força apocalíptica, funcionando de forma bastante alegórica. Fale um pouco disso.

Lucas Turino: A questão de classes no livro “Este lado para cima” é a força motivadora por trás de toda a trama.

Conforme a leitura avança e aquele universo nos é apresentado, passamos a perceber que a desigualdade social ali surgiu e evoluiu como um caminho para a sobrevivência e transformou a realidade e as escolhas dos grupos dentro de suas respectivas classes sociais. A vida de cada grupo se adaptou para sobreviver onde eles estão.

O universo Cyberpunk (geralmente retratado como uma realidade em que a tecnologia se desenvolveu, e a qualidade de vida piorou), imagina um futuro dominado por grandes famílias/corporações que dominam o poder militar e financeiro, o que cria e aumenta em escalas desproporcionais a desigualdade e os problemas sociais. Quem tem, vai continuar tendo acesso e continuar “crescendo”, enquanto quem não tem, nunca terá acesso ao necessário para conseguir ganhar alguma coisa. A obra “Este lado para cima” utiliza essa vertente da ficção científica como base para apresentar essa visão “exagerada” da realidade e seus problemas, que, de uma maneira geral, jamais se resolverão sozinhos. Um bom planejamento, a união dos que estão por baixo, acesso à tecnologia dos “poderosos” pode ser um caminho para a mudança.

A desigualdade social gera problemas muito maiores e profundos do que conseguimos ver e perceber. Pensamentos, escolhas, ressentimentos e até o desenvolvimento biológico são afetados pela nossa classe social e este livro se utiliza dessa ideia para construir um universo desigual e, por isso, violento.

Com a roupagem de um futuro ficcional, tento trazer uma forma lírica e subjetiva de ver alguns dos problemas atuais, que precisam ser pensados, estudados e trabalhados.

Fernando Andrade – A frase a violência justifica os meios me veio ao pensamento quando li seu livro. Górgio é um líder com um propósito sem medir suas consequências. A sociedade que o livro espelha é mediada por isso, fale um pouco.

Lucas Turino: A sociedade que o livro espelha é mediada pela violência, mas não por uma violência sem consequências. Toda ação violenta gera mais violência. Toda divisão gera mais desigualdade, seja entre as duas cidades, ou dentro da própria cidade de baixo.

Górgio é um líder que ascendeu a sua posição sem crescimento, sem aprendizado, sem ter se envolvido e participado do mundo a sua volta; tudo que ele tinha era o ressentimento de sua exclusão. Uma liderança poderosa, mas sem inteligência e sem conexão com seu povo, se torna frágil, tem constantemente que afirmar sua posição através da violência e é facilmente manipulado.

A violência no universo do livro “Este lado para cima”, é um meio de vida. É um produto e um meio para alcançar o que deseja. Uma sociedade construída e fundamentada na violência não conhece outra forma de vida; o ciclo continuará se repetindo até que alguém com “força social” apresenta uma nova forma de ver o mundo e pensar sobre o lugar daquelas pessoas. Pajo tem essa vontade. Seu plano é construído para tentar dar uma nova oportunidade àquele mundo, de se reconstruir de uma forma diferente, mas mesmo assim, ele é embasado em violência, vingança e medo (atitudes que dividem e repetem o ciclo até então estabelecido) como ele mesmo reconhece no final do livro.

“Espero que apareça alguém com coragem de verdade, para recomeçar ao invés de matar. Uma pessoa que consiga unir e evoluir conscientemente todos que precisarem de força para sair de onde estão.”

Fernando Andrade – A palavra sucata me veio à mente como forma de criar um hibridismo de Gênero, onde a máquina se adequa ao humano. Este mundo ciborgue parece bastante uma metáfora para países como Estados Unidos, onde porte de arma é tão liberado. Comente.

Lucas Turino:  Sucata é tudo aquilo que foi descartado como inútil; que já não desempenha mais sua função original ou que não corresponde mais às expectativas de seu dono. E a reciclagem é quando reutilizamos estes materiais para novas funções.

No universo do livro, a reciclagem é uma necessidade, pois além de existir muita sucata, essa é a forma de acessar as novas tecnologias, de se aprimorar, aprender e se fortalecer.

Em um “mundo ciborgue” (onde existem bio-implantes de aprimoramento corporal) a sucata vai além dos materiais comuns, de restos de objetos, metais, plásticos e se estende ao ser humano. O corpo comum já não é capaz de sobreviver, de se defender, se torna obsoleto, “sucata”; as relações humanas já não são importantes, e sim a força, a capacidade, a riqueza. O ser humano e sua humanidade são tão sucata quanto os restos de materiais descartados.

A comparação com os Estados Unidos é válida para o universo criado no livro “Este lado para cima”, pela sua relação com as armas e o incentivo a violência que isso gera. Mesmo que a intenção de incentivar e facilitar o acesso às armas de fogo seja diminuir a violência e aumentar a segurança, é inegável que a função primordial desta ferramenta seja tirar a vida do seu alvo e lançar o atirador (assassino) e todos à volta da vítima em um mundo um pouco mais violento.

O futuro cyberpunk também se apresenta como uma metáfora para países como o Estados Unidos por se constituir em um regime hiper capitalista, em que o acúmulo de riquezas é a regra principal, criando com isso a existência de grandes corporações que são donas de grande parte das cidades, e assim controlam seu funcionamento e o dinheiro que circula na mão dos trabalhadores, gerando grandes desigualdades sociais e uma relação de exploração e dependência entre as classes.

Fernando Andrade – Queria que você falasse mais da questão da visualidade da sua história por ser também roteirista. Me vi num thriller onde a ação é tão fluida e corrente como um bom filme. Comente.

Lucas Turino: A minha vida na arte começou no teatro. Sou formado em artes cênicas e atuo na companhia de circo e teatro “Os Palhaços de Rua” há 10 anos; quando comecei a escrever, sempre me preocupei muito com a visualidade das “cenas”, com o encadeamento e com a fotografia, tentando respeitar o espaço de imaginação do leitor, já que, para mim, a mágica e a vantagem da literatura é permitir ao leitor tirar a história das páginas e criar sua própria versão de tudo aquilo com sua imaginação.

Além de ator, sou roteirista no podcast literário “Sarau do Conto Surreal”, onde crio histórias, conversas e mundos fantásticos para que os ouvintes possam deixar sua imaginação fluir e se deixar levar pelo encadeamento dos acontecimentos.

Estas minhas experiências artísticas contribuíram muito para compor a forma como construo a história no livro “Este lado para cima”.

Também faz parte dessa questão visual na forma que escrevo o fato de eu ter crescido no final dos anos 90 e início dos anos 2000, pois, como muitas das crianças deste período, passei minha infância em frente à televisão assistindo vários filmes, desenhos animados e animações japonesas, que me mostraram formas de contar histórias, criar personagens e utilizar o espaço e o tempo como elemento da obra. Minhas referências também são muito compostas por obras audiovisuais.

A imagem dá ao texto um suporte que nos aproxima dos acontecimentos, nos coloca junto da ação e nos leva a viver a história junto dos personagens. Em um livro, essas imagens estão na cabeça do leitor, mas para mim como escritor, essas imagens criadas através da imaginação (que são diferentes para cada leitor) são ainda mais fortes e significativas para quem consome a obra do que em uma obra audiovisual, na qual a estética e a construção visual são entregues ao público sem nenhum esforço ou interação. Nos livros, a imaginação engaja o leitor na trama e na transformação que a história propõe; o faz pensar e refletir durante os acontecimentos.

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