Fernando Andrade entrevista os psicanalistas Caio Garrido e Fabio C. Zuccolotto

Caio Garrido capa de livro internet - Fernando Andrade entrevista os psicanalistas Caio  Garrido e Fabio C. Zuccolotto

 
 
 
 
 
 

FA – Que tipo de olhar vocês tiveram sobre as redes sociais para entender as novas formas de interação social, agora mediadas pela interface máquina? A pulsão brincaria numa espécie de vazio?

CG Olá Fernando. Me parece que os indivíduos contemporâneos são meio que forjados pelas redes sociais e sua lógica. Não só cada um dos sujeitos que ali operam levam às últimas consequências seus modos de afeto quando estão nas redes sociais, assim como as redes, a partir dessas novas interações online, acabam por forjar modos de interação fora das redes virtuais também. Os modos de cada sujeito se afetar, por exemplo, por certos movimentos de ódio e disputas intelectuais (muitas vezes falsamente racionais, pois estão na esfera puramente especulativa e até delirante) acabam transcendendo o espaço que seria o das redes sociais virtuais e caminham para o tête-à-tête presencial. Uma forma de contato, exemplificando, que seria aquela forma rápida de tentativa de diálogo no whatsapp, pode se tornar uma forma-padrão de conversa entre duas pessoas, mesmo fora da rede. Uma das características desse tipo de interação é aquela em que se reage sem pensar àquilo que o outro diz ou parece dizer. Uma das lógicas das redes é a de um convite constante a se reagir.
Como se as pessoas fossem forçadas todo o tempo à reagir, a partir da estrutura mais basal que é a construída por seus algoritmos. E esse modo de reagir (“reacts”) invade a vida da realidade material, visto que as pessoas começam a agir em suas relações mais próximas na mesma lógica que a das redes, acabando por perturbar essas relações. Quando você fez a pergunta à nós, você definiu bem quando qualifica as novas formas de contato a partir das redes como interações sociais; pois é, seriam mais interações do que verdadeiramente relações. Um corpo pode interagir gravitacionalmente com outro, pode reagir à outro. Uma pessoa reage a uma outra inconscientemente, muitas vezes, sem ao menos ter alguma mínima relação com ela que for. Uma interação entre duas pessoas não precisa necessariamente de nenhum vínculo criado. Na era digital, essas interações se dão em rede. Em redes multidirecionais. Você não precisa ter nenhuma relação formal com uma pessoa na rede social para interagir com ela. A interação não precisa vir de uma relação desenvolvida por meio de uma relação prévia de trabalho, cultural, econômica, ou comercial, por exemplo. A etimologia da palavra relação parece confirmar isso; as relações promovem ligações entre pessoas, ou carecem de alguma ligação entre elas para que uma relação exista de fato. Se a pulsão brincaria num vazio, como você diz na pergunta, talvez sim. Não sei exatamente se brincaria, mas certamente os sujeitos podem ficar verdadeiramente enredados pelos incontáveis objetos da pulsão, já que eles não são previamente determinados, nem fixos. O que as redes parecem promover é uma superficialização das relações com vínculos já existentes. Os vínculos podem ficar mais frouxos, além do que, pode haver uma melancolização dos laços sociais a partir do advento das novas tecnologias de massa e as redes sociais. O mundo vai ficando também mais bidimensional, ou assim parecendo. Pois, na verdade, as pessoas, e suas relações, são muito mais complexas que as redes querem nos fazer supor. As pessoas têm profundidade. Ou teriam (risos).

FZ – Oi, Fernando. Prazer em conhecê-lo. Antes de mais nada, agradeço a sua leitura atenta do nosso livro. Apenas complementando a resposta do Caio, por exemplo, a partir dessa minha pequena formalidade. Ao escrever “prazer em conhecê-lo” estou apontando não para a forma ou a mera formalidade de uma comunicação simbólica de praxe ou desimportante, mas para o prazer que suscita em mim a possibilidade de trocar ideias e impressões com você. Isso, claro, porque estou lhe conhecendo (ainda que a distância), diferentemente do Caio, com quem você já trocou (ideias, impressões, críticas, etc.). Ou seja, mais do que uma orientação que a boa educação pede (ou pedia), essas poucas palavras denotam que me alegro em conhecer alguém em quem reconheço um par, um interlocutor. Agora, note como o “estou lhe conhecendo” cliva a nossa apresentação num tempo que escapa à nossa presença física. Pois bem, poderíamos imaginar essa nossa troca num passado recente, quando as cartas também superavam a distância promovendo a interlocução em um espaço de tempo maior, e notaríamos que a essência dessa troca seria afetada. Entretanto, ao circunscrevermos as novas tecnologias a esses dispositivos que permitiram interações sociais mediadas pela interface máquina, invariavelmente adentramos no terreno daquilo que chamei em meu texto de um “ter tecnológico”. Algo que transborda o sentido da posse material de um objeto físico para a “posse” de um objeto virtual e estritamente simbólico. Isso altera radicalmente o sentido da comunicação, seja em função das metas pulsionais, das fantasias ou dos desejos. Como os objetos virtuais tendem ao infinito, o “ter tecnológico”, expressão mais recente da lógica do consumo e da estética do consumismo, configurou uma rede social virtual global, como um duplo acelerado da rede social, nos termos do conceito introduzido há mais de meio século pela antropologia social inglesa. Evidentemente, a boa educação não morreu, mas remodelou-se, assim como os discursos, os princípios morais e éticos o fizeram. O tempo das trocas passou a ser cada vez mais próximo da instantaneidade, afrouxando a autocensura em cada um de nós num imediatismo em busca do prazer nas redes sociais virtuais. Por isso, o olhar do outro, do interlocutor, reificado em mais um objeto virtual, foi achatado a um papel, uma função, como aquele que me dá prazer ou me causa desprazer.

FA – A política que se fazia, antes e durante a Guerra Fria, agora se contextualizou de forma diferente com as redes sociais virtuais. Temos os haters, a mentira (fake news), as teorias da conspiração, que parecem se adequar a uma forma política de desumanização. Comente.

CG – Podemos visualizar essa situação pensando no conceito de perversão, a partir da Psicanálise. Elisabeth Roudinesco traz uma boa formulação que acho que dialoga com a sua pergunta, em que ela diz: “Embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar da autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. E, sejam quais forem seus aspectos, ela aponta sempre, como antigamente, mas por meio de novas metamorfoses, para uma espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, gozo. O fascínio exercido sobre nós pela perversão deve-se precisamente a que ela pode ser ora sublime, ora abjeta. Sublime, ao se manifestar nos rebeldes de caráter prometeico, que se negam a se submeter à lei dos homens, ao preço de sua própria exclusão; abjeta, ao se tornar, como no exercício das ditaduras mais ferozes, a expressão soberana de uma fria destruição de todo laço genealógico.” Olhando também sob esse viés político, como falo lá no livro, Jacques Lacan tinha um pensamento – segundo a psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl – que dizia mais ou menos o seguinte: se um dispositivo for perverso, qualquer um de nós pode ficar pervertido por ele. A internet e as redes sociais são ambientes virtuais sociais muito férteis para uma má utilização. São dispositivos sociais extremamente permissivos para a manipulação, mentira, e respectiva desumanização, isto é, a desvalorização da vida. As redes sociais acabam por dar poder a pessoas que antes não a obteriam por outro meio, atribuindo assim perigosa potência a pessoas mal-intencionadas. Dá voz a quem antes não obteria capacidade através de outro meio qualquer, para, unido a outros, gerar um impacto em determinada sociedade. Essa voz é dada a quem, muitas vezes, não traz nenhum grau de legitimidade em seu discurso. Penso que, após a pandemia e o período de governo extremista e autoritário como o que tivemos no Brasil (2019-2022), devemos reaprender o que significa tudo isso, e o que significa principalmente a palavra cuidado. Pois nos parece autoevidente que cuidado não é o que se passa nos meios internéticos das redes nos tempos atuais. As redes sociais virtuais ampliaram exponencialmente as possibilidades de se fazer uma má política. Sobre os usos da mentira, David Foster Wallace, escritor já falecido, parecia já antever esse tipo de fenômeno, quando antes de 2008, escreve em seu romance inacabado “O Rei Pálido” que “o novo líder não vai mentir pro povo, ele vai fazer o que os pioneiros do mundo empresarial descobriram que funciona bem melhor: vai adotar a persona e a retórica que permitam que as pessoas mintam para si próprias.” Esse é o buraco que nos metemos. Como também digo no nosso livro, as redes sociais costumam favorecer o anonimato, ou então o esconder/disfarçar características problemáticas e antissociais. E favorece o contrário também, como quando acontece o ressurgimento de fenômenos sociais em que pessoas adquirem mais força e são encorajadas a virem a público despejar seu ódio, ou todo seu afeto outrora reprimido, e se autodeclararem, sem escrúpulo e disfarce algum, como pertencentes a alguma ordem extremista, ou se declararem partidários do nazismo, por exemplo. O paradoxo é que a mesma tecnologia que fez dos anônimos o grito gutural de toda a estupidez humana, também propiciou a oportunidade de revelar a identidade dessas mesmas pessoas. Isto é, dentro dessa tecnologia de várias camadas, anonimato e falta de privacidade são faces da mesma moeda.

FZ – Concordo totalmente com o Caio. Somando-me ao seu argumento, diria que de uma perspectiva geopolítica quase tudo continua como antes. Não é por menos que, por falta de nomenclatura, jornais e analistas têm nomeado a atual conjuntura de “Guerrra Fria 2.0”. Isto é, as nações, as corporações e os mais variados grupos organizados de poder disputam, como sempre disputaram, a primazia pelos recursos naturais. É claro que nessa nova década a questão climática adquiriu, finalmente, o seu devido espaço nas manchetes e nas mentes preocupadas dos líderes mundiais. Infelizmente, não de todos, e, me parece, que é com esses, que possuem um método político pensado para as redes sociais virtuais, que devemos nos preocupar em primeiro lugar, junto àqueles que “trabalham” para eles, ainda que involuntariamente. Nesse sentido, o que há de novo, de fato, na geopolítica é uma infraestrutura racionalizável, como denomino no ensaio. Portanto, máquinas, cabos, redes, ondas, satélites, etc, que organizaram uma nova arena da disputa global. Nela, as perversidades e a neurose obsessiva se destacam como as estruturas psíquicas mais “adaptadas” às novas guerras simbólicas ou, para ficarmos com um termo da moda, “guerras híbridas”. A questão é que, agora, cada internauta age como um soldado alistado à revelia.

FA – A publicidade parece criar uma hiperconexão com o desejo de consumo nas redes. Como vocês trabalharam isso no livro?

FZ – A publicidade é o modus operandi das interações virtuais. É ela quem estrutura a dinâmica do “ter tecnológico” daquele que pretende ser visto e notado nas redes sociais virtuais. Ela é a comunicação daquele que compreende não somente os outros enquanto objetos virtuais, mas a si próprio enquanto um objeto a ser “vendido” no universo da internet.
No sentido daquilo que complementei à resposta da primeira pergunta, as redes sociais virtuais são, ao mesmo tempo, uma imensa vitrine e um imenso espelho. Por isso, a lacuna do reconhecimento nas redes sociais, interditado parcialmente no mundo físico, encontrou abundantemente o falso atalho do ser-ter-reconhecido que gradativamente não precisa do outro, do interlocutor em sua complexidade. Nas redes sociais virtuais o ter refere-se à “posse” de objetos virtuais, que podem ser pessoas eventualmente, mas isso não importa, desde que sejam representadas por “likes”, “dislikes”, emojis, memes ou qualquer outra coisa que já exista nesse universo e ainda desconhecemos.

FA – Continuando nisso, o binômio ser-ter parece ser algo fluido numa rede onde digitamos algoritmos zero e um? A fantasia se logaria a alguma marca mais fluída?

FZ – Não sei se compreendi a sua pergunta. Na análise que proponho, certamente não há fluidez alguma no arranjo ser-ter-reconhecido, muito menos no ser-ter, no âmbito das redes sociais virtuais. Ou seja, o que há são interações sociais moldadas por algoritmos que respondem, em última instância, à invenção magnífica de uma máquina que, a partir dos impulsos elétricos da tomada constroem uma linguagem binária que soergue todo o universo tecnológico contemporâneo. Tal invenção é fabulosa, quando pensamos no avanço em tantos campos necessários à vida humana, como a medicina, a agricultura, a possível reversão do aquecimento global, o acesso ao conhecimento, a própria comunicação. O paradoxo é que, quando avançamos o suficiente, ao ponto de vivermos simbolicamente imersos nesse universo, organizados em redes sociais virtuais parciais, podemos ser levados, individualmente e coletivamente, a rupturas que colocam em risco a nossa própria sobrevivência. Porque, ao contrário de outros avanços tecnológicos na história da humanidade, não somos mais somente os criadores da tecnologia, mas também somos “criados” por ela. Pelos algoritmos regidos pelo modus operandi da publicidade, nos reconhecendo pela estética do consumo e pelo consumismo. Nesse ponto, as fantasias de cada um de nós, que vivemos cada vez mais imersos em tais redes, são fartamente estimuladas por inúmeros objetos, imagens e sons que fingem aplacar a necessidade de reconhecimento e geram prazer.

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