Fernando Andrade entrevista o poeta Eric Pestre

ERIC PESTRE - Fernando Andrade entrevista o poeta Eric Pestre

 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE: E a escrita poética pode ter uma relação com a memória forte, pois ela traz, em de palavras, intensas imagens que fogem um pouco do sonho, para falar de algo que se perdeu, com a passagem do tempo. Queria que você falasse um pouco disso no seu livro.

Campo de pouso é um livro construído a partir de imagens forjadas na memória. O falecimento de meu pai aconteceu enquanto eu finalizava Trama e Sapatos de culpa, meus livros anteriores, junto com a editora 7 Letras. Faltavam apenas a escolha das capas e poucos ajustes.

Neste vazio que se criou, passei a dedicar algum tempo diário na busca por fragmentos de lembranças, imagens soltas de diferentes fases da vida, “…na expectativa de que a memória/ me presenteie com nossos momentos/ fatos que tenham sido importantes/ para você e por mim ignorados/(…)”*. Por imprecisas, essas imagens chegavam poéticas e passavam ao papel em forma de versos iniciais para o desenvolvimento dos textos (que muitas vezes se distanciavam por completo de sua origem).

Os poemas foram escritos numa tocada só, num período de 30 dias. Optei por deixá- los numa gaveta por mais dois meses. Decidiria o que fazer só quando passasse esse prazo de descanso. Mas depois da releitura, foram mínimos os ajustes até o envio para a editora. Mesmo a ordem dos textos foi pouco alterada.

FERNANDO ANDRADE: O cotidiano com que passa ou passou com um afeto tende um pouco para crônica, mas revela uma intensidade poética doida. Como é esta transposição de fatos\lembranças para algo que parece etéreo, mas é tão real a ponto de podermos fixá-lo numa página, numa tela, num livro.

Talvez, deixar a força das imagens prevalecer, sem buscar explicar o significado ou reconstruir a história por inteiro, tenha sido a característica principal do processo de criação de Campo de pouso. Não sei o quanto construir o livro dessa forma foi pensado. Mas não creio que seria possível fazer diferente. As memórias de infância
chegavam de relance, em pequenos fragmentos, como fotos antigas sem legenda.

FERNANDO ANDRADE: Como o pai presente, real, cotidiano pode se transformar em poética, em doce saudade, a saudade é traduzível em alguma língua?

Quando o livro foi escrito, durante o mês seguinte à morte de meu pai, a saudade era apenas um barulho (“…/ liberta, a última lágrima/ escorreu pela taça/ no percurso/ trôpego ao desconhecido/ sinto apenas o barulho da saudade”)**, algo que estava presente, se fazia ouvir, causava incômodo, mas não chegava à compreensão da escuta. Estava na memória, mas não tinha cheiro ou gosto. Nesse período, o exercício diário foi o de me permitir ouvir esse barulho, capturar e transpor para o papel as imagens que brotavam, numa espécie de processo terapêutico. Foi assim que vivi a primeira fase do luto – ainda que sem essa clareza na época. Talvez, hoje, passados 10 meses, os textos fossem outros, ou sequer existissem.

Emprestar um verbete à saudade deve ser uma tarefa das mais difíceis, em que o resultado ficaria aquém do sentimento. Por isso, acredito que a linguagem poética, em que o significado do texto é atribuído mais pelo leitor, do que por quem escreve, seja a forma mais fácil e a mais adequada.

FERNANDO ANDRADE: Que autores de uma poética sobre a memória você pensa quando cria este seu livro?

Não pensei em autores ou em livros específicos na criação de Campo de pouso. É claro que vários deles devem estar presentes, mas não como inspiração percebida. Depois de escrever os primeiros versos a partir de memórias fragmentadas, alguns poemas se distanciavam das imagens iniciais e ganhavam inspiração em textos de grandes escritores, como Borges e Drummond, mas não posso dizer que pensava na poética sobre a memória deles.
“A chuva”, cujos primeiros versos são “convidei a chuva para passar/ aquela tarde conosco/ (…)/ ela se chegou de carinho/ ficou leve – e silêncio nos nossos ouvidos/ (…)”***, é o único exemplo, que me ocorre agora, de texto do livro que foi inspirado num poema, chamado “Sem Trémulos Barulhares, A Chuva”, do livro Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristezas, de Ondjaki. Este livro, como todos os outros que já li desse ótimo escritor angolano, pode ser caracterizado por uma forte poética sobre a memória.

Há outro exemplo. Embora eu não tenha feito essa associação durante a escrita, enquanto organizava livros na estante há poucos dias, me deparei com Monodrama, de Carlito Azevedo. Na ocasião, pensei ser possível associar “Sudoeste”, texto que consiste na segunda parte do Campo de pouso, com o belo poema “H.” daquele livro.
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* Trecho do poema Sudoeste, segunda parte de Campo de pouso.
** Versos finais do poema Percurso, de Campo de pouso.
*** Alguns versos do poema A chuva, de Campo de pouso.

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