Fernando Andrade entrevista o escritor Antonio Cescatto

Antonio Cescatto - Fernando Andrade entrevista o escritor Antonio Cescatto

 
 
 
 
 

Fernando Andrade: Pensando aqui, o voto em branco é uma forma de isenção? No romance a palavra branco pelo título tem muitas potencialidades de sentidos sobre atuar ou não atuar, ser um animal político, ou alienado. Como você pensa isso no seu livro?

Antonio Cescatto: O voto em branco, eu acredito, é uma forma branca de isenção. Em outras palavras, é o exercício de uma certa moral higienista – própria das tendências eugênicas do final do 19 – que esconde, em sua cândida pureza, o mais extremado preconceito.

Não há como tentar explicar uma não-escolha como uma escolha. Nesse gesto – como naquele famoso gesto da viagem a Paris, em 2018 – inscreve–se uma tentativa de despertencimento: da história e da tragédia do momento histórico, da condição humana e da realidade da condição humana.

Apesar do verniz aristocrático de sabedoria que pretende transmitir – e que diagnostico em amigos e pessoas queridas – esta atitude é, apenas e tão somente, aquilo que a sócio-psicologia do século 20 definiu com uma palavra: alienação, quanto à polissemia da palavra “branco”, como eu a usei neste livro, de fato ela tem, como você diz com precisão, muitas potencialidades de sentido. O sentido ontológico de “Nada passou em branco”, por exemplo, sustenta-se a partir de uma radical anamnese (como dizem os médicos) da realidade que circunda o personagem.

À condição da observação focada e científica, que os aventais brancos e engomados dos mestres tentam passar, ele contrapõe uma visão mais nublada, escura, sombria. Visão marcada por uma atenção dispersa, mas dispersa não por falta de atenção e sim por um excesso de interesses, filosóficos, literários e – com todo cuidado que o uso dessa palavra pode implicar – humanistas.

Isso gera uma paralisia que só pode ser curada, no caso do personagem, por uma ação política, ação política que se traduz na frase que ele diz altissonante, como se um mantra da revolução permanente que acontece dentro dele: Abaixo a Ditadura!.

Fernando Andrade: O seu narrador personagem atravessa sua profissão de medicina com muita dúvida, exercendo uma prática do espírito da filosofia mas também da literatura. A certeza de um diagnóstico médico no personagem é atravessada por questões bem existenciais, com relação a certo humanismo com questões urgentes como o racismo. Fale um pouco destas questões entre a fé numa ortodoxia médica e a dúvida?

Antonio Cescatto: Acredito que um dos pontos centrais do livro é aquele em que o personagem reflete sobre os livros de fisiologia em contraponto aos livros de filosofia e literatura que, como diz o José Castello, na orelha do livro, “entortam” a cabeça do pobre estudante. Nos livros de fisiologia tudo é ordenado, e a compreensão de cada parte do processo bioquímico e fisiológico ajuda a compreender o todo, isto é, o funcionamento do organismo. E aí se coloca a questão.

Quando esta ordenação é contraposta a uma visão que enxerga outros tipos de organismo, isto é, organismo social, o organismo político, ou a organização do próprio pensamento (via filosofia, poesia e arte), ou quando simplesmente o olhar se desloca dos pontos a que deveria se dirigir como aprendiz, e divaga, relaciona, amplia, se afasta, olha de longe, pacientes deixam de ser pacientes e tornam-se seres humanos. Mas seres humanos cuja natureza é a invisibilidade. E entre todos os seres que a prática médica torna invisíveis pelo próprio método de dissecação das estruturas (método da observação empírica para compreendê-las), a presença do negro se destaca.

Ele é o mais invisível entre os invisíveis das enfermarias, como certamente o é da sociedade. Talvez o contraste com a pureza dos aventais brancos super-engomados, os sapatos brancos reluzentes, as calças brancas impecáveis, talvez tudo isso, em contraste com o mundo em que transitam, seja aquilo que leva o personagem a entender com mais precisão como se estrutura a ordem social fora dos hospitais e enfermarias que frequenta.

A descoberta do Cinema Novo, mais tarde, traça um caminho inverso. Ao descobrir Nelson, Glauber, Guerra, ele vê o mundo-paísem que vive lá fora, e o reencontra na prática médica. Estabelece-se um jogo de espelhos vertiginoso. Glauber se manifesta em Adrianópolis, não mais na tela de um cinema.
Cinema e arte e vida se interpenetram.

Acredito que isso mostra como é difícil a compreensão do racismo como fenômeno, ainda mais quando esse racismo toma uma forma estruturante das relações sociais.
Estamos tão naturalizados com a estrutura dos livros de fisiologia, com o tipo de padrão mental a que ele nos induz, que simplesmente não conseguimos nos deslocar do nosso ponto de equilíbrio.

Só a arte nos recupera essa dimensão. Isso pode ser visto no brilhante trabalho de Juliana Stein, o Sim e Não (exposto na Bienal de São Paulo de 2011), em que a artista, durante os primórdios da Parada Gay (ali por 2010), retira alguns manifestantes trans do seu contexto e os fotografa em sua estonteante ambiguidade.
Diante de obras como essa, podemos enxergar um pouco além de nós. E dos livros de fisiologia.

Fernando Andrade: De certa maneira a célula no capítulo da introdução introduz uma ideia bem social sobre interação entre dentro e fora, país e estrangeiro, saúde e doença. O fascismo não seria esta fome por pureza do corpo e da mente? E seu personagem através do pensamento sobre a arte, combatendo esta travessia que vemos hoje na nossa vida cotidiana?

Antonio Cescatto: Nesse primeiro capítulo, na verdade, eu quis conectar dois universos aparentemente antagônicos: o universo das trocas extra e intra celulares com o universo do romance. Afinal, como diz o José Castello, na orelha do livro, este é, essencialmente, “um comovente livro de aventuras”.

Claro que, aqui, não estamos diante de um romance cavalheiresco, muito menos de Austen. Acho que oscila mais entre os delírios do Quixote e os embates de Julien Sorel, com um acento dos personagens distópicos de Bruno Schulz e Robert Walser.

Na complexa estrutura de trocas, ph, macrófagos, mitocôndrias, procurei uma relação com uma história de uma célula que coloca em xeque os mecanismos de equilíbrio e homeostase, para colocar-se em risco, tornar-se uma célula estranha ao seu meio.
Nesse processo desfazem-se as fronteiras entre fora e dentro, apontando uma metáfora clara com as questões sociais. É a sociogenia de Franz Fannon aplicada à filogenia da bioquímica médica.

Nesse sentido e nesse contexto, o fascismo pode ser visto, sim, como uma forma desesperada de recuperar um equilíbrio impossível em um organismo cuja natureza é viver em permanente desequilíbrio e instabilidade.

O fascismo é sempre um “nostalgus” de uma homeostase perdida. Só que, ao contrário da “nostalgus” dos românticos, por exemplo, a do fascismo se manifesta pela destruição da própria célula e dos organismos que a sustentam, caso suas teses e sua nostalgia não sejam alcançadas – e nunca serão.

O problema é que essa forma de reação do fascismo nem sempre é explícita: ela pode se manifestar nos organismos mais teoricamente equilibrados.

Fernando Andrade: A poética no seu romance entra de um jeito que faz do enredo, dos personagens um certo dilaceramento da condição humana. Como pensou na escrita deste ato tão coeso com as palavras e as ideias?

Antonio Cescatto: Para mergulhar na aventura de um personagem que não teme as profundidades, parti de alguns recifes muito sólidos. O livro Angústia, do Graciliano, por exemplo, obra-prima – e objeto não identificado – da literatura brasileira. Ou essa coisa extraordinária que é As Mulheres de Tijucopapo, da Marilene Felinto.

São narrativas que apresentam não só a dilaceração, mas a dissolução do que é normalmente conhecido como “natureza humana”, a partir de uma construção verbal de alto rigor e arquitetura.

Não falaria do caos que gera uma estrela, acompanhando Nietsche, mas da diferença entre natureza humana e mente humana, apontada pela Gertrude Stein. A natureza humana governa, dita leis, organiza. A mente humana abre clareiras, inaugura novos espaços, cria novas estruturas, onde até o dilaceramento pode ser visto como um atributo repleto de dignidade e generosidade humana.

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