Fernando Andrade entrevista a escritora Suzana Freire de Mattos

Suzana Freire de Mattos - Fernando Andrade entrevista a escritora Suzana Freire de Mattos

 
 
 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE: Ensaiar no teatro é bater um texto até ele ficar pronto para a ação dramática, no ponto.  No ensaio me dar a ideia de uma preparação de um tema a ser discutido, debatido. Mas no texto temos aspectos da criação, da fábula, da improvisação sobre o que é existido. Como você uniu a parte teórica com a criação?

SUZANA FREIRE DE MATTOS: O tom ensaístico incorpora-se à pesquisa, na busca de criar para o leitor uma teia de relações com múltiplas entradas e sentidos. Não creio que se trata de uma escrita criativa, apesar de reconhecer o tom ensaístico, isso porque as leituras são estabelecidas a partir do método científico. À parte isso, passei bastante tempo em contato com A Obscena Senhora D, lendo e relendo o texto, até conhecê-lo de cor, para evitar o meu maior medo ao tocá-lo como objeto de pesquisa, que seria engessá-lo num formato de correlações, como um inseto sem vida pregado na parede de um entomologista. A escrita exigiu uma abertura radical, para escapar de associação generalizadas e estéreis, pois a obra hilstiana é pulsante, e a pesquisa se debruçou longamente sobre como manter esse objetivo vivo mesmo na investigação, já que muitas vezes a crítica é feita sobre a palavra morta, em que tudo que poderia ser dito já foi dito. Talvez seja por isso que o livro “Poética da Profanação” tenha esses aspectos citados como criação, fabulação e improvisação. A princípio tentei começar pelo material teórico, mas isso não funcionou pelos motivos indicados acima. Então deixei que o livro guiasse as relações possíveis sem desejar esgotar esse conhecimento, colocando a obra em primeiro plano toda vez que o desespero falta de respostas acabadas tomava conta do processo. Quando pensei estar longe de qualquer solução, cheguei a abandonar totalmente o projeto, com enorme sensação de fracasso. Porém o livro de Hilst não me deixava esquecer. Então novamente voltei ao começo. Foi quando li um texto que tratava da literatura de Jean Genet trazendo uma nova visão da crítica, escrito por Marcos Siscar: “Antes de mais nada, não se deve querer-dizer sua verdade; a significação não é suficiente” (SISCAR, 2005). Assim como a obra de Genet, A obscena senhora D era igualmente indomável. Quando, como pesquisadora, desisti de “querer-dizer sua verdade”, pude encontrar novos caminhos para leituras múltiplas e abertas, para manter profanação iconoclasta da obra sem entregá-la aos sentidos tirânicos. Fixar um sentido do “querer-dizer” para a obra hilstiana seria “dar um nome, assim como toda certidão de nascimento [acte de naissance], é sempre sublimar uma singularidade e indicá-la, entregá-la à polícia” (DERRIDA, 1974, p. 13) Tendo isso em mente, o caminho culminou numa criação de um texto/pesquisador/leitor disposto a suportar se embrenhar numa crítica literária sem chave interpretativa.

FERNANDO ANDRADE:  Que tipo de material sobre a filosofia de Deleuze você encontrou na escrita da Hilda Hilst? Traços como linhas de fuga, rizomas, como eles materializam a estética escritural da autora? 

SUZANA FREIRE DE MATTOS: A obra de Deleuze e Guattari, Mil Platôs, colaborou imensamente tanto na leitura da obra quanto no processo de escrita investigativa, sendo um pensamento que se apresenta como movimento constantemente em fuga, uma abertura para refazer as relações de hierarquia de valores, inclusive na relação da palavra com o sem sentido.
De A Obscena Senhora D tem uma linguagem que se espalha de maneira fluída, um fluxo sem hierarquia, fugindo da tirania da palavra (Barthes), e capaz de fazer girar um rizoma de linguagens e vozes, cuja imagem se busca ver em Poética da Profanação, na terceira margem entre a crítica, a literatura e a vida. O texto de Hilst gera inúmeras perguntas, com sentidos que muitas vezes se repelem como polos conceituais opostos, de acordo com inversão desses valores sociais e por aproximações de maneira rizomatica, no espaço ao lado do sagrado e do profano em fluxos muitas vezes inclassificáveis, constante desvio entre o risível, o patético, o profano e o sagrado que resulta dessa poética transgressora.

FERNANDO ANDRADE:  Que elementos podemos dizer num ensaio teórico seja profanador com relação ao texto original? Fico imaginando quantas lacunas, vãos, um texto com seu pode sugestionar uma releitura da obra da Hilda? Escrever é sempre deixar fendas sobre os sentidos?

SUZANA FREIRE DE MATTOS: Escrever representa tanta coisa que seria difícil sintetizar o ato de maneira generalizada, em uma máxima, ainda porque teríamos grande dificuldade de encontrar o “texto original”. No caso da escrita hilstiana encontramos características de uma poética da profanação, como argumento no livro, entre fugas e fluxos dos discursos entre coisas miúdas da linguagem, o eterno no vão de quebras abrutas, com múltiplas religações possíveis, ou fendas. Hillé é personagem-sujeito que generosamente empresta ao leitor o próprio fôlego, ou melhor sede existencial, e nos convida a nos embrenhar numa experimentação poética, com perguntas permeadas pela derrelição existencialmente humana, a mesma derrelição que a nomeia como Senhora D. Sua voz precisa ser ouvida como a um outro. Talvez essa escritura seja um tipo de escuta ativa, para ser vivida como experiência de peregrinar pelas perguntas principalmente ao redor do amor e da morte.

FERNANDO ANDRADE:   Barthes foi um autor que elevou a escrita à combinações entre muitas áreas, intertextos; hipertextos que vazam a questão da própria autoria. Queria que você falasse um pouco disso com relação ao seu livro? 

SUZANA FREIRE DE MATTOS: O pensamento de Roland Barthes permeou cada parte da análise dessa poética de maneira a indicar que para além da tirania da linguagem (A Aula), a profanação é uma expressão de um discurso amoroso (Fragmentos de um Discurso Amoroso). O intertexto é uma materialização desse texto infinito da qual a obra hilstiana faz parte, em justaposição de imagens e esfacelamento, como mencionei de maneira breve na resposta acima. O escritor G.K. Chesterton argumenta que a literatura é a democracia dos mortos, onde habitam subjetividades em constante atualização, e por meio dela podemos encontrar universos que de outra forma nos seriam ocultos. A literatura hilstiana é radialmente aberta a esse diálogo intertextual, e faz da sua arte uma busca principalmente pelo lado oculto, aquilo que não deveria ser dito pelos ditames da moralidade em voga, palavras que ela toca por intermédio de sua rachadura obscena, vasculhando pelo cotidiano os resquícios desse outro que sempre se mantém além do encerramento da razão.

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