Fernando Andrade entrevista o escritor Roger de Andrade

Roger de Andrade - Fernando Andrade entrevista o escritor Roger de Andrade

 
 
 
 


FERNANDO ANDRADE:  A literatura no seu romance funciona com o erotismo não só sobre o verbo, a palavra, a linguagem, mas também sobre o corpo, presença ou ausência dele no desejo preenchido ou não. Fale um pouco sobre isso na sua escrita e ficção.

ROGER DE ANDRADE: O amor e o erotismo, a “dupla chama” de que falava Octavio Paz, para quem a poesia é uma erótica verbal e a rima uma copulação de sons, penetram com todo seu vigor em meu livro Memórias Sentimentais de um Gauche na Vida. O amor, o sexo, o erotismo, a libido, o desejo – estamos falando daquela energia vital que a todo momento nos desafia, nos move ou paralisa, e sem a qual a existência seria muito sem graça. O desejo lato sensu, que envolve não só a atração física e o encantamento afetivo e amoroso por uma outra pessoa, mas diz respeito também a amizade, a fruição estética e/ou emocional de uma obra de arte, ou a ação política enquanto transbordamento de nossas paixões utópicas, atua sem cessar sobre a trajetória deste “gauche na vida”, que está sempre às voltas com estas injunções. É por isto que costumo caracterizar o livro como uma teia, ou um bordado, de fragmentos de discursos amorosos. A dialética desta dupla chama não poderia estar ausente em um trabalho literário que contempla a memória, os afetos, os deslocamentos de um personagem “à margem”, que a todo momento se questiona e questiona o mundo à sua volta. E ao questionar sua condição, de um corpo/espírito desejante em um espaço-tempo que pode ser real ou imaginário, reverbera este desejo no trabalho da linguagem. É por isto que gosto de pensar este livro não só como um romance de formação, embora pouco convencional, mas também um romance em formação, pois estamos acompanhando a trajetória de um caminhante gauche que quer ser escritor, em particular poeta. O desejo de poesia, na vida do gauche e na escrita do gauche, é ao mesmo tempo seu “drama” e sua busca utópica. Linguagem e corpo, palavra e desejo, nadam nas águas turvas e revigorantes das experiências erótico-amorosas-existenciais.

FERNANDO ANDRADE:  Seu personagem caminha ao mesmo tempo que reflete sobre sua memória, seus amores. O que o exercício do caminhar trouxe ao seu romance numa linha que pode passar por fronteiras físicas e geográficas mas também de gêneros? Comente.

ROGER DE ANDRADE: Assim como o personagem central do livro, considero que o ato de caminhar, para além dos óbvios benefícios corporais, traz consigo em potência revelações estéticas e existenciais. Uma maneira que às vezes encontro para “solucionar” poemas em andamento ou elaboração é sair para caminhar e ficar pensando no mesmo. Uma palavra, uma frase ou uma ideia podem brotar nestas andanças. Vários dos materiais que escrevi surgiram de minhas “caminhadas quase diárias”, para usar uma expressão recorrente do personagem do livro.  É como naquela frase conhecida, “solvitur ambulando”, isto é, caminhando, se resolve. Estas “derivas psico-geográficas” também possuem uma dimensão filosófica evidente, pois mobiliza ao mesmo tempo a razão e a emoção, reflexões e questionamentos, e, em alguns casos, podem até beirar a experiência epifânica, pois nos colocam diante de pensamentos ou emoções “iluminado/as”, que surgem de forma inesperada das vibrações da paisagem, física e mental. Mas iluminadas pelo que? Por sons, sentidos, aromas, ritmos, imagens, etc., que é o que o caminhante hipotético pretende captar e imprimir em seu trabalho artístico específico. Basta lembrar daqueles filósofos e escritores para quem caminhadas eram cruciais: Rousseau, Kant, Nietzsche, Rimbaud, Thoreau, Baudelaire, Kerouac etc. A lista é enorme. Nietzsche, que se considerava um “bom caminhante”, disse: “ficar ‘chumbado na cadeira’ é o verdadeiro pecado contra o espírito”. Ou ainda: “para fazer a avaliação de um livro, um homem, ou uma música, nosso primeiro reflexo é perguntarmo-nos: sabe ele caminhar?” Não podemos nos esquecer também do flaneur de Charles Baudelaire, o artista-poeta da modernidade, que em suas perambulações recorrentes pelas paisagens urbanas parisienses, com sua “gastronomia do olho”, provocava um desafio às forças do acaso, à ordem bonitinha e bem ajeitada das coisas do cotidiano sufocante e entediante. A caminhada pode ser um salto deliberado para fora do marasmo de nossas vidas comezinhas, em direção a eventuais danças e encantamentos do intelecto e da fantasia. Caminhar nos ajuda a pensar o mundo e a nós mesmos em um ritmo cuja escolha é só nossa. Ficamos diante de uma espécie de liberdade construída para dar asas a nossa imaginação, uma espécie de solidão emancipada. Estar em marcha nos permite mapear novos e velhos territórios, novas e acostumadas paisagens, isto é, percepções que se renovam e/ou inovam. Está em jogo uma interdependência mútua: o escritor como caminhante, o caminhante como escritor. A criatividade começa com uma palavra na sequência de outra ou com um passo após outro? A experiência da caminhada nos permite tentar responder esta dúvida existencial.

FERNANDO ANDRADE:  As citações e referências são muito bem feitas por você no seu texto. Como  trabalhá-las para ter uma costura tão bem feita?

ROGER DE ANDRADE: É sempre um desafio dosar o uso de referências e citações ao longo de um trabalho artístico, pois corre-se o risco de o material ficar pesado demais ou superficial demais. Ao mesmo tempo, o ato de criação literária está a todo momento às voltas com associações que causam tumultos na mente do escritor e, não raro, teimam em penetrar no texto. Na cabeça do escritor instala-se uma volúpia, um alvoroço, uma agitação de vozes e ideias querendo entrar em uma festa em que não há lugar para todo mundo, mas que ao mesmo tempo ele não quer deixar ninguém de fora. É quando entra em campo a intuição e a criatividade para botar um mínimo de ordem na bagunça, ou no caos. Em um de seus poemas mais conhecidos Murilo Mendes usa a expressão “estado de bagunça transcendente”. É isto. O desafio é transcender a bagunça que está sempre explodindo e fervilhando em nossas mentes.

Como dizia Paul Valery, “o leão é feito de carneiros digeridos”. Gosto de me alimentar, engolir, absorver, processar passagens, sacadas, insights, textos, citações, etc., de outros autores, em particular dos que tenho alguma afinidade estética. É uma espécie de antropofagia, de canibalismo amoroso. Não só para enriquecer meu texto, mas também como uma forma de homenagem. O auge desta abordagem está nos usos que faço de poemas de Drummond, o gauche-mór na vida, como se pode ver ao longo do livro. No entanto, há referências não só à poesia, mas também à filosofia, à política, ao cinema, à música, etc. O mosaico de referências e alusões é amplo. Em várias passagens, os estados de espírito e as situações narradas suscitam e evocam ora poemas, ora canções, ora reflexões filosóficas. Esta apropriação episódica e seletiva de outras obras artísticas é um componente intencional da narrativa, estrutura-a de alguma forma, e tem como objetivo ampliar o universo de informações diante do leitor e fornecer camadas adicionais de percepção e interpretação.

FERNANDO ANDRADE:  Há um imaginário bem cinematográfico em diversos filmes que passam pela cabeça do leitor enquanto lê seu romance. Cite alguns filmes e me fale porque desta imersão no audiovisual? 

ROGER DE ANDRADE: Não só a metalinguagem está fortemente presente, a literatura que fala da literatura, mas também a intertextualidade, no caso a linguagem literária que dialoga, conversa, troca, com outras linguagens. Uma espécie de “linguagem cruzada”. Acredito que estes caminhos cruzados enriquecem um trabalho artístico. No caso do cinema, em um dos capítulos do livro o leitor perceberá, em algum momento, que foi colocado em La Vie d’Adèle. Na passagem em que o personagem caminha pelas ruas da cidade com suas duas amigas, é como se uma câmara estivesse “narrando” as experiências multissensoriais destes personagens. Uma das epígrafes do livro remete a uma fala do personagem de O Homem que Amava as Mulheres, de François Truffaut. Em um outro capítulo, um personagem fantasia poder discutir literatura com personagens femininas que tem nome de atrizes conhecidas do cinema francês. Acredito que, em determinadas circunstâncias, a escrita literária pode alargar seu alcance estético, e muito, quando se vale da linguagem e da experiência cinemática, palavra e imagem (e som) articulados de forma a produzir um efeito artístico convincente. Só para dar um exemplo, Marguerite Duras faz isto muito bem e podemos nos perguntar: ela é uma escritora-cineasta ou uma cineasta-escritora? E Ingmar Bergman, é um cineasta-dramaturgo ou um dramaturgo-cineasta? Isto só para citar dois exemplos de peso no âmbito desta troca auspiciosa entre a linguagem da palavra e a linguagem do cinema. Fui sempre um fã ardoroso do cinema e até escrevi umas “críticas” de filmes no jornal Estado de Minas na época de minha graduação. Os filmes pelos quais me interesso são aqueles que exploram temas filosóficos, políticos, poéticos, de questionamento existencial, etc., que, não por coincidência, são os temas que mais me atraem quando da construção do texto literário. Mas estes mergulhos que procurei dar a partir da escrita, a partir do trampolim da palavra, não são apenas no cinema, mas também na música e na poesia, como já observei. Daí a ideia de introduzir ao final do livro uma lista com os poemas citados ao longo da narrativa e um QR Code que remete a playlist do que seria uma espécie de “trilha sonora” deste gauche na vida.

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