Fernando Andrade entrevista com o poeta Fiori Esaú Ferrari

Fiori Ferrari - Fernando Andrade entrevista com o poeta Fiori Esaú Ferrari

 
 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE:  A relação entre casa e espaço público, cidade e estrangeiro parece circular pelos seus poemas. A sensação de segurança\pertencimento parece diminuir quando nos afastamos do nosso lugar de nascimento. Como é  nos poemas esta espécie de conflito ente particular e o geral?

FIORI FERRARI: Os deslocamentos são meu centro. É o que proponho de fato em alguns dos poemas que escrevo. Meus avós, por parte de mãe, eram libaneses, e meu pai, italiano. O meu povo de ascendência africana está marcado pela diáspora. Essa diáspora que não foi fuga, foi sequestro, foi aprisionamento. Me chama a atenção de que os deslocamentos, de certa maneira, são sentidos por mim como “não espaços”. A par da minha falta de fé, uma das primeiras imagens que me marcaram foi a fuga da Sagrada Família para o Egito. Um desenho em algum livro, Maria, com Jesus ao colo, montada em um burrinho e José caminhando à frente conduzindo o animal e segurando uma corda. Este “não espaço” de que falo é sempre uma esperança e uma desesperança. Esperança porque é nele que se exerce a espera, o ato de caminhar reforça que ainda não chegamos, portanto, não concluímos o renascimento a que fomos submetidos. É uma desesperança porque deslocar é mover-se do lugar que nos dá conforto. E por isso ter de carregar na estrada as raízes.  A afirmação da ancestralidade, tão cara à luta do povo negro, é sim um poderoso argumento da razão, da inteligência. Há uma esperança e uma desesperança em deixar o lugar materno. No entanto, como sua pergunta bem aponta, este conflito entre o espaço público e a casa estrutura o modo como escrevo. Sim. Impossível não dizer que a questão política, porque estar agindo no espaço público é uma constante tomada de posições, é sim uma postura diante do que a vida e a sociedade nos propõem. O filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli, 1972, traz duas cenas que são potentes quanto à questão do espaço público, o seu uso político, resistência e diáspora. A primeira é quando São Francisco se despe em praça pública. O deslocamento do seu corpo nu em cena, a devolução da roupa que não lhe cabe mais, o renascimento que este movimento traz e a renúncia ao acúmulo, que é o embrião e o fundamento do capital, tudo isso mostra, ao meu ver, a construção da nova casa em meio ao movimento. Mover-se é morar. A outra cena, ainda que não num espaço como uma praça ou rua, é aquela em que São Francisco está diante das escadarias do palácio papal que conduzem ao assento de Inocêncio III, o papa de então, e este desce despido de seu manto ricamente adornado para acolher o homem pobre. Os pés nus que caminham de São Francisco são beijados pelo Papa. Mover é morar. Os poemas que possuem este recorte, os presentes no Particípio das Flores, e outros que estão em publicações anteriores, trazem sim esta tensão. A casa e o movimento. A própria escolha de uma forma mais livre para expressá-los é um indicativo de que o caminho se faz em ação e que as palavras, antes até do conceito que carregam, dizem o percurso a ser descoberto e percorrido.

FERNANDO ANDRADE:  As imagens feitas por você parecem ter um grande potência tanto imaginativa sublimática  quanto uma necessidade de movimento pelas veredas do desenho geométrico do poema. Para mim é também uma cinética de uma transformação da tristeza para a luta,  do imobilismo em locomoção. Para ter esta noção política nos poemas, o que a escrita precisa alcançar nas suas internas condições?

FIORI FERRARI:  Franca. Toda escrita deve ser franca. Está entendido então, nestes tempos de tantos êxodos, que toda locomoção é política. E, sim, concordo muito com a ideia de que há uma transformação da tristeza para a luta. No meu imaginário, nessa fabulação de terrenos sem propriedade, livres, a tristeza é a energia que move a luta, e que se move à luta. O ato de escrita para mim é doloroso e imprescindível. A forma livre com que escrevo os poemas, as regras formais que não alcanço, incompetência minha, confrontam-se o tempo todo com uma pergunta: é aqui que o poema termina? É aqui que termina o percurso? Percebo, ainda que tão difícil perceber-se quando se escreve o texto, que as imagens que uso, metáforas de um verso, se justapõem e se impõem. Como corrente, como rio caudaloso, elas forçam a continuação do poema, talvez, por isso mesmo, meus poemas extensos. Uma vez me disseram “por que poemas tão longos?” ao que respondi “incapacidade minha, não saberia fazê-los de outra forma”. Então, se temos esse imperativo, esse ordenamento das imagens, se temos a ideia que todo percurso é político, para o bem ou para o mal, se sabemos que migrar é um direito e como diz a frase que li numa camiseta de um manifestante certa vez, nenhum ser humano é ilegal, se queremos fazer poemas é urgente que falemos com franqueza. Profetas, e me perdoem a imagem bíblica, não são aquelas, aqueles, que preveem o futuro, são aquelas, aqueles, que têm a coragem de denunciar as injustiças no presente. Não, não creio que a função da arte seja de militância, ainda que ela possa ter um tanto de militância, mas creio que a função da arte seja o caminho e o caminhar, já sabemos, é um agir político. Franca. Toda escrita, se comprometida com sua lógica interna, com a coerência que lhe define, com sua gramaticalidade, coisa própria da metalinguagem, deve ser franca. Porque refletir sobre a palavra exercida, a palavra depois permanecida, é profético.  A palavra exercida e permanecida é sim uma posição radical diante do mundo que se torna instável, que passa na velocidade da rede social, que não fixa e que corta as raízes para não as levar.

FERNANDO ANDRADE:  Relações entre o perene no estado do tempo da flor, sua estação em plena valência, mas também o tempo da morte, o passado em lembrança-memória é um olhar que você move dentro dos seus poemas. Fale disso um pouco.

FIORI FERRARI: Num primeiro momento, diante da pergunta, me vem à mente um poema que fiz para o livro “Variações do Exílio”, Penalux, 2018. Transcrevo:Kaspar Hauser

Sempre lembro
que quando assisti
pela primeira vez
o Enigma de Kaspar Hauser
estava triste e aves canoras,
tristes, tristes também
comiam na palma da minha mão
plantações enormes de abandonos.

Eu me achava entre os cestos
tramados de folhas secas
e via o ato supremo da delicadeza,
seu nome feito de flores
crescer no jardim.

Formava lágrima.

(Essa levo comigo na vida,
descansará até o fim,
nalgum canto da minha pálpebra.)
Meu entendimento desentendia.

Se eu tivesse sido agricultor,
eu também plantava nomes.

Seu tivesse sido agrimensor,
eu media a dor dos nomes.

Meu pai me chamou de flor.

Quando iniciei o motim
contra o velho continente,
poupei as flores de Kaspar.

Eu não podia devastar
minha alma
pra resolver meu édipo.

Gosto do estranhamento que traz o nome Particípio das Flores. Flor transformado em verbo. Florir. Florido. Não escrevi os poemas na pandemia. Um ou outro, talvez. A maioria já estava ali, pronta. Mas fiz a colheita, cortei, podei, joguei ao fogo, escolhi enfim, na pandemia. A flor, para mim, é herança simbólica de meus pais. Minha mãe acha, até hoje, que ganhar flores é uma graça concedida. Meu pai achava que o pai dele, meu Nonno, era uma flor. Me disse isso uma vez ao explicar a razão por ter dado meu nome.  A vida é frágil, a vida é grácil. Sempre trago na memória os versos de Álvaro de Campos: “Quero acabar entre rosas/ porque as amei na infância.” A memória é, pelo recorte que faço, no plano coletivo, o liame que nos irmana como grupo social, que nos preserva da barbárie, que nos afirma como humanidade. No entanto, no plano individual, ela se esvai, ela se perde porque o corpo físico está sujeito à corrupção e ao fim. Não sei se alcanço a pergunta feita, se tenho a capacidade de respondê-la. Sei apenas que é uma herança bastante romântica a efemeridade da flor e sua potência em vida. A sofisticação em se mostrar, a exuberância de sua construção tão singela num tempo tão curto. Então penso naqueles quadros que muita vez vi, nas casas simples do interior onde havia a reprodução de flores, a parede já gasta pelo tempo e pela nudez ou as flores de plástico que permaneciam num jarro à mesa, penso na tentativa de permanência de uma vida que se vai. A necessidade de perpetuarmos o belo, o que nos agrada, ainda que tenhamos consciência da farsa, ou do bom jogo de iludir, que isso nos traz. Faz parte da memória preservar a ternura e o prazer e faz parte da memória ser depositária do horror. Ao escolher, selecionar os poemas que comporiam “O Particípio das Flores”, o horror pleno estava nas nossas casas, a nossa porta, em nossos corpos. Diante da obstinada indiferença de nossos governantes, tivemos de lidar com o trágico. E lutar contra a naturalização que nos quiseram impor garganta abaixo diante de tantas e tantas mortes. Por isso, a expressão “o particípio das flores” para além do estranhamento semântico que possa revelar, vem da teima em não naturalizarmos o horror. E contra o horror traremos o inusitado, a festa, a alegria, o inesperado. Ainda que nos doa. Ainda que nos entristeça. Ser triste é enfim uma postura política.

FERNANDO ANDRADE: A literatura é um dos temas de alguns dos seus poemas, onde sua dança-jogo é sempre um lugar de escolha e certo pertencimento dentro de um ambiente tanto hostil quanto ambivalente. Que lugar ela parece ter dentro de sua fabulação?

FIORI FERRARI: Demorei muito para me pensar como poeta. Até hoje não acho que sou. E não é por falsa modéstia. Houve um tempo que me chamei poeta, mas isso se apegava de modo tão estranho aos meus ouvidos, e cada vez mais tinha certa irritação com esse caráter de distinção que alguns conferem à palavra. Repentistas, rappers, o povo todo do Slam, as vozes dos saraus nas periferias… essas, esses, sim, são poetas. Eu penso a palavra e, sei que também é uma maneira de se fazer a arte, mas a busca da naturalidade em meus poemas é um difícil caminho. A poesia que outorga uma distinção social, esse academicismo que não sou capaz de abraçar, por pura incompetência, preguiça, chamem do que quiser, a isto não pertenço. Rimbaud nega a arte literária muito jovem. Por outros motivos mais complexos, mas, de novo, reconheço como um mito romântico a incompatibilidade do gênio junto à corrupção do corpo, a ideia de envelhecer torna-se detestável. Eu não desisti da literatura, apenas a ponho no lugar que a minha curta visão lhe confere. Nesse sentido, muito estrito, eu sei, a literatura tal como a vejo será sempre uma literatura em risco porque ela não deve, ou pelo menos não deveria, ser tomada por uma casta, um determinado grupo, normalmente, homens e brancos, que se arrogam no direito de determinar os gostos, os temas, as formas… Volto, a Literatura, agora com letra maiúscula, só faz sentido, como disse acima, se em deslocamentos, se em locomoção, se mudando de paisagem, se compartilhada fraternalmente. Só faz sentido se do povo. Se há alguma consciência no que escrevo, é esta: a Literatura de mulheres, de transgêneros e de homens, pessoas que reconheço como meus, esta Literatura, uma Literatura em risco, tem lugar. E seu lugar será sempre o movimento.

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