Fernando Andrade entrevista a poeta Maria João Cantinho

maria joão cantinho - Fernando Andrade entrevista a poeta Maria João Cantinho

 
 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE:  o corpo possui uma relação íntima com o dia e a noite. São narrativas que obedecem aos sinais da luz e do escuro da noite. Seus poemas de certa forma atravessam esta relação entre a vigília e o sonho,o despertamento e a imaginação de um estado de repouso. Fale um pouco disso.

MARIA JOÃO CANTINHO: Sem dúvida que o corpo se entretece com o dia e a noite. Há poetas mais diurnos e solares e outros que possuem uma relação íntima com a noite. Talvez eu me situe no Segundo grupo, os meus poemas desaguam sempre nesse limbo entre vigília e sonho, como que alimentando-me desse magma extraordinário que é a noite. Não estou sozinha, pois há e houve tantos poetas que amaram a noite e dela fizeram e fazem a sua matriz elemental. Estou nela como uma espécie de refúgio e a minha imaginação espoleta-se normalmente durante esse período do dia. Não falo da noite como espaço de repouso, mas de inquietude permanente, de condição a que não posso fugir.

FERNANDO ANDRADE:  A pedra é um elemento usado por você de maneira muito matizada por tons e tintas cheias de nuances.  Como foi mexer com sua dureza e ao mesmo tempo maleabilidade?

MARIA JOÃO CANTINHO: É muito interessante notar esse elemento na minha poesia. A pedra é o sinal da gravidade, do peso, mas também pode ser o mármore que se esculpe com o cinzel ou o escopro. Essa é a ideia fundamental do meu livro, como se a pedra desse lugar, pelo esculpir à leveza da arte (da escultura) e da vida. Há uma maleabilidade da pedra, assim, que eu comparo à maleabilidade do trabalho da linguagem pelo poema.
É o poema que liberta a linguagem, como em toda a literatura, que a transforma em linguagem-para- nós. Antes disso ela é informe, é a criação que lhe dá forma.

FERNANDO ANDRADE:  Como o tempo no seus poemas atravessam os afetos e as ausências de um mundo colocado em espera, onde a linguagem ( fora do poema) é tão deslocada e manipulada na construção da mais violência e de guerra?

MARIA JOÃO CANTINHO: Vários poemas meus referem-se à Guerra, sobretudo a Guerra da Síria e Indirectamente um poema sobre os refugiados. Não é que eu queira fazer dela um estandarte na minha poesia, seja em defesa de quem for, mas o poeta não pode isentar-se, ou melhor, eu não posso isentar-me do tempo que vivo, o tempo catastrófico que atravessamos, de violência e de Guerra. A linguagem, para refutar um pouco o que Adorno disse a propósito de Celan, pode «dizer» essa experiência e, muitas vezes, não tem como evitá-lo. Leiam-se os poetas sírios do nosso tempo ou os poetas palestinianos, em que os poemas estão em carne viva e padecem dessa ferida aberta que é a própria linguagem, mediadora dos afectos e da linguagem. Não sei se respondi à questão.

FERNANDO ANDRADE:  O coração só funciona dentro do corpo. Mas sua imagem polissêmica atravessa as paredes para pertencer ao mundo das cores, do contato humano. Esta relação entre dentro e fora, entre caixa acústica e música de expressar todo um rico e vasto repertório de imagens. Comente. 

MARIA JOÃO CANTINHO: O coração é o centro vital do nosso corpo, mas também simboliza, enquanto imagem polissémica, a fonte de todos os afectos e sensações, não só no nosso interior, mas naquilo que nos é exterior. É a metáfora mais poderosa para falar do humano, nesse sentido, não há nada mais humano, ao mesmo tempo sublime e íntimo. E também é, como o Fernando diz, fonte de um «vasto repertório de imagens» na poesia de todos os tempos, mesmo quando ela se reclama mais formal.

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