Fernando Andrade entrevista o escritor Adalberto Müller

Adalberto Muller - Fernando Andrade entrevista o escritor Adalberto Müller

 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE:  Ao ler Pequena filosofia do voo, me ocorre a ideia que seus contos não estão fechados tematicamente e nem na forma. Existem lacunas onde as relações se estabelecem através de certas referências, e pontos cardeais onde a leitura é tão importante na escrita quanto o texto do autor. Fale um pouco destas relações entre ler e escrever.

ADALBERTO MÜLLER: Gosto que você veja um não-fechamento nos meus contos. De fato, não escrevo (ficção) em função de temas, e muito menos em função de “questões”.
Eu procuro entender vidas, mais do que temas. Se eu começo a pensar em temas, escrevo uma tese, um artigo acadêmico. Mas as vidas é que me interessam, desde que, de alguma forma, eu entro em contato com elas, seja de modo real – ou imaginário. Por exemplo, esse jogador de futebol de “Aqui, nas Laranjeiras”. Sempre fico pensando em jogadores que não entraram no grande circo da fama. De pequeno, eu ia assistir jogos de futebol no interior.
De vez em quando alguém comentava: “Fulano vai jogar na capital!” (Sendo que a capital, para mim, era Cuiabá ou Campo Grande). Depois, você nunca ouvia falar desse ou daquele jogador, porque ele acabou que “não deu certo”.
Um dia você olha nos olhos de um desses jogadores e entende o que se sente ao “não dar certo” (porque eventualmente você também sente a mesma coisa mesmo sem ter sido jogador de futebol) e entende que o futebol, como a vida, é feita de pequenas e grandes tragédias. E pode ser que as vidas se cruzem no tempo e no espaço. Agora, a forma sim, eu a persigo. Sobretudo quando encontro uma vida que me interessa, ou vidas que me interessam. Vidas e acontecimentos. Para mim, cada pessoa é uma narrativa. Sendo assim, creio que para cada pessoa ou acontecimento há um modo distinto de narrar.
Quanto mais congruente é a narrativa com a pessoa e com o acontecimento, tanto mais a vida aparece e se impõe. Ou as vidas. Minha grande mestra, nesse sentido, é Virginia Woolf. Eu leio e releio infinitamente livros como Mrs. Dalloway ou Rumo ao farol. Qual é o tema/assunto desses livros? Não sei dizer. Mas conheço as personagens como se fossem minhas parentes próximas. Para mim, elas estão vivas. Sinto o mesmo, mas de uma maneira bem diversa, com Clarice Lispector. Em Clarice a coisa é vertiginosa, você entra numa vida que está se formando incessantemente. Ao mesmo tempo, a própria forma do romance se forma. Se eu pudesse, escreveria um livro chamado Vida e Forma. Esse é o meu assunto.

FERNANDO ANDRADE:  A política aparece nos seus contos de diversas formas, num conto mais realista como “Archibaldo”, mas também numa ficção científica como “Pequena filosofia do voo”, que é  uma potente alegoria política do um estado teocrático e fascista? Como você trabalha as relações entre povo, sociedade e estado em tão diferentes formatos?

ADALBERTO MÜLLER: De fato, se há um fio condutor entre os contos desse livro, é a presença da opressão, e o fantasma da ditadura. Nesse sentido, é um livro absolutamente contemporâneo, pois é este o Brasil em que estamos vivendo (e o mundo em que vivemos agora, infelizmente): o retorno do fascismo e o anseio que uma parcela da população tem por um regime ditatorial. Em “Archibaldo” e em “Pequena filosofia do voo” a ditadura e o autoritarismo aparecem de maneira mais explícita. Ambos são alegóricos, no mesmo sentido que Terra em transe (G. Rocha) e Alphaville (J-L Godard), e cito esses dois filmes porque eles são também o exemplo de como uma obra de arte pode ser alegórica sem ser panfletária. Ambos também surgem sob o signo da resistência ao fascismo e à opressão. Mas eles não se reduzem a isso. “Archibaldo”, por exemplo, é tecido a partir de uma história real (que eu ouvi do próprio “Eduardo”) sobre a amizade entre um menino e um rinoceronte. Em Buenos Aires, nos anos 1940, houve um rinoceronte com esse nome. E também existiu por lá um diretor de zoológico estrangeiro, que, aliás, era escritor de…ficção científica (esse pode ser um link entre “Archibaldo” e “Pequena filosofia”, se o leitor ou a leitora se interessarem por links curiosos). Mas os dois contos entram por caminhos não alegóricos. Eu queria, na verdade, me aproximar mais da perspectiva do rinoceronte do que do menino. Minha amiga Maria Esther Maciel diria que é uma experiência de animalidade na literatura. Já na “Pequena filosofia”, além do tema animal (dos pássaros), eu queria entender uma relação afetiva e ao mesmo tempo usar uma linguagem “além do gênero” (gender). Não é fácil criar uma sintaxe de gênero “não marcado” na língua portuguesa, porque nossa gramática é bastante explícita quanto aos gêneros. Os pronomes, os particípios, tudo te obriga a pensar em masculino e feminino. Então, eu tive que criar uma gramática “trans”. Inclusive, o “trans”, nesse conto, é também “transumano”. E é claro que há, em nosso mundo, uma conexão evidente entre religião e conservadorismo. Ou seja, uma politização extrema da religião. De tábua de salvação, a religião se transforma em tábua de tortura, tal como ocorreu na Idade Média. E tudo em nome de uma utopia anacrônica de “moral e ordem” – que tem uma matriz psicológica/psicanalítica forte, de recalque, de
medo, de “Angst”.

FERNANDO ANDRADE:  Me deixou comovido a citação a Bruno Schulz, no conto,  as malas. A escrita crepuscular me parece uma das formas mais potentes de luta contra o esquecimento e a barbárie humana.  O personagem do conto, porém, não está imerso no universo da literatura sendo um pessoa que lida com cartas, e há neste conto uma bela síntese entre a prosa e o poema, entre a estética e a vida mundana. Portugal e Polônia teriam alguma afinidade estilística?

ADALBERTO MÜLLER: Devo e devemos a leitura de Schulz a Henryk Siewierski, seu tradutor. A literatura de Schulz é uma benção! Fui aluno e orientando de Henryk, e meu primeiro curso com ele na graduação em letras foi sobre poesia russa e polonesa moderna. Lemos Akhmátova, Mandelstam, Herbert, entre tantos. “As malas” é um mergulho no mundo eslavo, tal como o conheci ao longo dos anos. É um mundo fascinante e misterioso, tanto quanto as línguas eslavas.
Tenho vários amigos eslavistas, inclusive agora estou num departamento de eslavística, em Trier (na Alemanha). Mas confesso que não sei polonês.
Entendo alguma coisa, porque estudei russo. Agora, em “As malas”, além do aspecto humano (do encontro afetivo), eu também estava preocupado com a forma. Por exemplo, como “traduzir” para o português o que um personagem polonês está pensando. E como também traduzir a conversa do “carteiro” polonês e da escritora portuguesa – que ocorre em inglês – mantendo as diferenças de “sotaque”? Tenho muitos amigos tradutores. E às vezes observo neles um sotaque (embora nem todos admitam, pois em geral os tradutores querem escrever uma língua neutra), por exemplo, curitibano, ou carioca.
Como vivi em muitos lugares do Brasil, e como sou também teuto-paraguaio, talvez eu perceba mais claramente esses sotaques. Quem vê de fora vê melhor. Mas voltando à questão, claro que há uma conversa literária. Só que é uma conversa literária entre duas pessoas que estão “fora” da literatura, e não uma conversa de iniciados. Bom, isso foi o que eu entendi, quando escrevi.
Talvez, para uns, seja literário demais. Para outros, de menos. “Ao que, o mundo é muito diverso”, como diz o Riobaldo Rosa. Sobre a relação entre “estética e vida mundana”, acho que é exatamente por aí.

FERNANDO ANDRADE:   Os personagens da literatura russa são antropofagicamente (re)alimentados por você no conto Kronstadt. Há uma referência ao Woody Allen que escreveu um filme dentro deste universo entre dentro e fora, realidade e ilusão\fantasia. A Rosa púrpura do Cairo. Fale um pouco disso.

ADALBERTO MÜLLER: Gostei do ‘antropofagicamente (re)alimentados”! Esse conto, “Kronstadt”, é aomesmo tempo real e imaginário. É um relato de viagem e um exercício de metalepse (eu cultivo a metalepse como rosas no meu jardim retórico!). A vida é cheia de metalepses, ainda mais no nosso tempo, em que você tem telas por todos os lados! Estamos frequentemente cruzando as fronteiras do real e do virtual, ou confundindo as duas coisas. Em São Petersburgo, por exemplo, os turistas são frequentemente abordados por “atores” vestidos com trajes do tempo dos tzares (e, consequentemente, dos grandes autores russos que admiramos, Tolstói, Dostoievski, Tchékhov). Quando andei pela primeira vez pelos corredores do Hermitage, eu me senti metalepticamente no filme A arca russa. Woody Allen, claro, mas antes de tudo, Orson Welles, mestre absoluto das metalepses narrativas. Em Cidadão Kane, por exemplo, começamos o filme (de ficção) vendo um documentário. De repente, o documentário termina, e você ouve o barulho da bobina no projetor e a luz se acende numa sala de projeção. Welles era um mago, e a magia é a metalepse colocada em prática.
O ilusionismo. Mas, muito antes de Welles, há Cervantes. Cervantes é o pai da metalepse romanesca. No capítulo IX de Dom Quixote, o romance se perde, literalmente, e a história se interrompe. Somente depois, alguém (outro narrador) encontra um manuscrito árabe, manda traduzir, e temos a continuação. Só que agora o leitor tem que saber que se trata de um romance falso e herético, porque foi escrito por um árabe chamado Cid Hamete Benengelli (ou Berinjela, risos)! O próprio universo mental de Dom Quixote é metaléptico. Ele confunde realidade e ficção o tempo todo. Felizmente, Cervantes inventou Sancho Pança, para dizer que a realidade existe e nela a gente tem fome de verdade, a gente tem ambições e desejos reais. Admiro enormemente os escritores cervantinos: Machado de Assis, Jorge Luis Borges, Paul Auster, Augusto Roa Bastos, Julio Cortázar, e o grande Sergio Sant’Anna, que perdemos lamentavelmente nesse mundo imbecil criado pelos bolsonaristas – contra quem “Kronstadt” esteja, talvez, escrito. Enfim, tudo é político. O protagonista não é cubano por acaso. E vivam os médicos cubanos!

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