Fernando Andrade entrevista o escritor Helton Timoteo

Helton Timoteo livro - Fernando Andrade entrevista o escritor Helton Timoteo

 
 
 
 

 FA: Seu romance me parece falar do ego da gente e do superego, duas instâncias onde existem as relações entre desejo, repressão, vontade, e a ilha não seria uma boa imagem para a mente humana? Cercada de mar, que para mim, seria o real atávico, perigoso, ousado. Este mar que o pescador atravessa todo dia, claro, que com o auxílio da imaginação que convém a todo bom pescador. Fale um pouco disso.

HT: Essa leitura pelo viés psicanalítico, na linha freudiana e/ou lacaniana, é não só possível como bastante coerente com o contexto da obra, especialmente em se tratando da construção da personagem João Pescador. Acrescentaria, porém, às duas instâncias mencionadas, uma terceira, que me parece fundamental, pois, junto com as anteriores, compõem os mecanismos psíquicos, conforme concebidos por Freud: o Id (este expresso, no conteúdo da pergunta, por meio do conceito de “desejo”, se não me engano).

Também concordo que seja possível interpretar a ilha como uma espécie de metáfora da mente humana (constituída pelos mecanismos supracitados). Mas se a entendemos dessa forma, forçosamente teremos que metaforizar o mar que a cerca (real atávico, perigoso, ousado) como uma espécie de potência externa que exerce o tempo inteiro pressões sobre cada indivíduo, isto é, sobre esta ilha que o constitui psiquicamente. E certamente a imaginação (não apenas a razão) funcionaria como um bom artifício, como boa estratégia para a superação das dificuldades decorrentes dessas pressões.

Entretanto, gostaria de sugerir outras duas possibilidades de leitura. A primeira, entendendo a ilha não como uma imagem de outra coisa, mais como imagem de si mesma, isto é, um espaço físico com determinadas caraterísticas geográficas e geológicas, forma de exílio, onde João Pescador pode se aproximar cada vez mais de si mesmo (aprofundando, revisitando e revisando questões psíquicas e existenciais que o incomodam profundamente), na medida mesmo em que se isola da convivência com os outros indivíduos, dos quais mantém relativa – e necessária! – distância. Isso nos conduz à segunda conotação de ilha. Ao se afastar de todos (talvez para perceber melhor o que está em seu íntimo e à sua volta), ele se insula, ou seja, também ele se converte numa espécie de pequena ilha, à qual só teriam acesso o jegue, o pombo, o lobisomem, Santa Bárbara, Jurupari, isto é, animais e entidades sobrenaturais, e, sobretudo, Variata (ser híbrido de difícil classificação).

FA: Queria que você falasse um pouco da relação do sobrenatural com sua história. Ele é tão delicado quanto sutil, nas formações das imagens que Variata passa ao amigo. Criatura híbrida entre a infância e uma mentalidade adulta? Como você a fez tão nuançada de matizes sobre a compreensão mental humana?

HT: João Pescador é um homem em vias de completar setenta anos de idade. Já teve várias profissões e vivências e experiências de toda sorte. Acumulou, ao longo de sua existência, inúmeras vitórias e fracassos, diversos traumas, recalques, frustrações; coisas muito boas e outras das quais se arrepende enormemente. A fim de passar sua vida a limpo, expurgando dela toda nódoa, tudo que a torna pequena, medíocre, para talvez atingir uma forma de plenitude do ser, despindo-se de tudo quanto é supérfluo, fugindo da agitação feérica da vida urbana, exila-se na ilha. Empreende, então, a busca por uma ascese. O problema é que por vias meramente racionais ele não conseguiria dar conta do processo de transformação e elevação a que se propôs. O intelecto, por si só, não seria suficiente para ajudá-lo nessa empreitada. Daí ele recorrer, ao longo da narrativa, à intuitividade, à imaginação, à fantasia, ao contato com entidades do mundo sobrenatural, que, de alguma maneira, o ajudam a lidar com (e a entender melhor) a realidade à sua volta. Além, é claro, das interações afetivas que mantém com o pombo e o jegue e com outros seres que emergem da sua memória, como a mãe dele, por exemplo, ou a namorada morta.

Mas tudo isso ainda parece ser insuficiente para o seu novo projeto de vida. “Exsurge então Variata: semeando torpores ao vento, doçura de menina, assombro de dilúvio ancestral, catástrofe de todos os ciclos…”. Menininha completamente distinta de todos os outros moradores da ilha, sem endereço certo, aparentemente sem família (salvo, talvez, o casal de botos cor de rosa, que brinca na praia a maioria das vezes em que ela aparece), com cerca de sete anos de idade, mistério dos mistérios. Qual a sua origem? Que materialidade a constitui? O que ela é? O que não é? Por que aparece na vida do Pescador e mantém um contato com ele até o final do romance? É real ou produzida pela mente solitária e fatigada de João? Seria um anjo da anunciação? Caberia, a cada leitor, tentar responder a essas questões, tentar desvendar o mistério que cerca a existência da menina.

Contudo, talvez seja melhor, ao invés de tentar elucidar a natureza desse pequeno ser, manter sua dubiedade, sua ambiguidade, sua polivalência. Sua aura relativamente mística. Me parece que o mais fundamental é que essa criança (que lembra a criança-prodígio de que fala Freud), ao interagir com o João, influencia decididamente na constituição subjetiva dele, na medida em que o leva a ultrapassar muitas vezes os limites de sua percepção dos fenômenos, de sua visão de mundo, conduzindo-o a novas relações com a realidade em torno e com a própria realidade que o constitui.

FA:  Você tematiza muito o poder da imagem no mundo cada vez mais assolado de excessos de signos tanto linguísticos quanto simbólicos pela cor, matiz, nuance. Queria tua opinião se esta policromática tessitura imagética teria uma certa conexão com o cinema, pela sua capacidade de gerar e gerir imagens em movimento perpétuo sobre o cerne dos significados do mundo?

HT: Certamente. Quando escrevi a primeira versão desse livro (no início da década de 90 do Séc. XX), morava em Salvador e era “rato de cinema”. Cheguei, inclusive, idealizar o roteiro de um curta que não teria diálogos, já que pretensamente as imagens falariam por si mesmas.
Nessa época me interessei muito pelas técnicas e estética da Nouvelle Vague (onda cinematográfica surgida na França nos idos de 50/60, com forte relação com um movimento literário chamado Nouveau Roman, também conhecido como “roman du regard” ou “romance do olhar”, em que o narrador se utilizava de uma espécie de câmera com a qual dirigiria a configuração discursiva da narrativa, como alguns romances da Marguerite Duras ou Alain Robbe-Grillet).

Tentei trazer, em vários capítulos ou partes de capítulos, algumas dessas técnicas, de modo que semelhassem pequenos recortes da realidade (a partir dos quais o narrador, e mesmo os possíveis leitores pudessem aprofundar o olhar para a realidade recortada), como quem se coloca diante de cenas cinematográficas. Daí eu achar que talvez o livro possa ser transformado em um filme. Fico muito curioso em saber como se daria essa passagem de uma linguagem a outra.

FA: O final do livro parece ter uma conotação bíblica como as dez pragas do Egito. Qual leitura, se existe no livro, de uma certa parábola religiosa sobre o livre-arbítrio, criação e perpetuação?

HT: Na verdade, o livro mantém estreita relação com elementos de várias culturas e tradições, entre as quais as bíblicas, num movimento pendular de captação e subversão.

Assim, são dez as pragas do Egito, a saber: 1) Conversão das águas do rio Milo em sangue envenenado: Êx 7,11-25. 2) Invasão de rãs nos rios e nas casas do Egito: 7,26-8,11. 3) Onda de mosquitos: 8,12-15. 4) Sanha de moscas venenosas ou de vespas: 8,16-28. 5) Peste sobre o gado: 9,1-7. 6) Tumores e pústulas nos homens e no bestiame: 9,8-12. 7) Geada: 9,13-35. 8) Invasão de gafanhotos: 10,1-20. 9) Trevas sobre o país: 10,21-27. 10) A morte dos primogênitos dos egípcios: 12,29s.

Deus teria dito a Moisés que solicitasse ao Faraó a libertação dos israelitas da escravidão. Como este não atende, lança sobre o Egito, ao longo de quase um ano, as dez pragas, às quais Faraó resiste, exceto à última.

No meu livro, o número sete perpassa toda a narrativa: Variata aparece pela primeira vez no Capítulo VII, João vai completar 70 anos (7 x 10), a namorada do João morreu aos 14 anos (2 x 7), a menina dá 7 conchinhas ao Pescador, 7 pragas devastam a ilha, Antônio dos Raios teve 7 filhos (seis natimortos e um que morre aos 7 anos de idade), 7 crianças morrem durante a devastação da ilha, todas com 7 anos de idade etc. Isso porque, em diferentes culturas (inclusive na Bíblia Sagrada), o número 7 tem toda uma simbologia, significando, entre outras coisas, a plenitude, a completude, a perfeição, justamente o que João pretende atingir no seu exílio.

Então, entre o texto bíblico e o meu, há diferenças singulares: 1) não há a mesma quantidade de pragas; 2) não há uma correspondência exata entre elas; 3) há uma diferença nos seus efeitos; 4) á última praga, no livro, são os homens, e não a morte dos filhos primogênitos (morrem sete crianças no livro, em consequência da devastação da ilha, três meninas e quatro meninos, todas filhas e filhos únicos, isto é, a morte destas crianças não corresponde a uma praga específica, mas uma consequência delas); 5) não existe uma motivação aparente, ou seja, não se trata de libertar um povo de sua escravidão.

Não há propriamente relação com alguma leitura de tal ou qual parábola religiosa. A história se passa numa parte da ilha, em forma de enseada. Numa das extremidades, mora João Pescador; na outra, Antônio dos Raios. No centro, outros moradores, entre os quais os irmãos Zé do Trabuco e Manoel Manco, antípodas do Pescador. Essa configuração espacial semelha um triângulo. Ao longo de quase toda a narrativa, essas quatro personagens raramente se encontram e nunca todas ao mesmo tempo. Enquanto não ocorre esse encontro dos vértices do triângulo, a vida na ilha transcorre com relativa normalidade. O problema é justamente quando eles se encontram nas mesmas coordenadas espaço-temporais. Aí desencadeia-se o desastre, cujo processo se inicia desde o início do livro, que vai culminar nas sete pragas.

Idealizei essa configuração, em função da minha teoria dos eventos notáveis, sobre a qual há um esboço no XVIII – Vento da Longa Espera. Podemos resumi-la dessa forma:
Nossa vida seria regida por uma enorme inconsciência. Claro que algumas de nossas escolhas seriam conscientes, mas os feixes de eventos que elas engendrariam e os feixes de eventos que as antecederam teriam surgido por razões muito acima de nossas vontades.

Ainda segundo esse ponto de vista, a vida de qualquer pessoa estaria repleta de pequenos eventos isolados que, reunidos com outros, formariam vários feixes de eventos ordinários. Justamente por isso, por serem corriqueiros, e muitas vezes repetitivos, nós não nos damos conta deles, e eles passam despercebidos, ultrapassando nossa capacidade de avaliação, sobretudo tendo em vista a vida acelerada que se leva hoje em dia.

De acordo com sua concepção, os seres humanos só se dão conta desse conluio dos eventos, na formação do nosso destino, quando ocorre uma fratura na banalidade de sua estrutura e o efeito produzido assume proporções extraordinárias, como as catástrofes, os acidentes e os flagelos. Basta mudar um detalhezinho e isso pode mudar todo o resto.

É mais ou menos isso o que ocorre no livro. No momento em que as personagens confluem para o mesmo espaço-tempo, quando essas coordenadas coincidem, desencadeia-se a catástrofe, o que, de certa forma, põe em xeque a nossa capacidade de escolha, isto é, o nosso livre-arbítrio. Segundo Spinoza, o livre-arbítrio seria uma ilusão, na medida em que nossas próprias escolhas são muitas vezes determinadas, haja vista seu entendimento da existência como uma grande teia de eventos. O que corresponderia mais ou menos à minha concepção de eventos notáveis.

Logo, o final do livro estaria relacionado antes a essa teoria e à simbologia inerente ao número sete: no último capítulo João fecha o ciclo de sua vida, atingindo, ou pelo menos se aproximando da plenitude, ao despojamento total do que não presta, ao modo do Cão sem plumas ou Uma faca só lâmina do João Cabral de Melo Neto.

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