Fernando Andrade entrevista a poeta e escritora Raquel Naveira

Raquel Naveira 3 - Fernando Andrade entrevista a poeta e escritora Raquel Naveira
 
 
 
 

Fernando Andrade:   Seu narrar estabelece uma relação de observação não só nos eventos olhados por você no cotidiano, mas é um observar também sobre a escrita que parece se fazer por muitas lentes que se faz dentro do texto, que é quase um fio em um certo labirinto da memória e escrita. O fio puxa um outro tema e a  estética vai se misturando por camadas sonoras. Como é este seu processo de criação neste sentido estético?

Raquel Naveira: Sou uma observadora de acontecimentos, pessoas, livros, filmes, arte, mitologia, história, religiosidade, filosofia. Tudo é captado como num radar.

A presença dos objetos e do cotidiano é uma constante em minhas crônicas/fragmentos poéticos. A reflexão sobre a condição humana e, súbito, uma epifania, uma revelação quando o objeto se transforma em símbolo. E tudo é passível de virar símbolo.

Esse olhar para o cotidiano ganhou dignidade artística e literária no Modernismo. Gosto muito do poeta português Cesário Verde, um precursor dessa temática. Sua obra é uma espécie de retrato lírico e sentimental da cidade de Lisboa, a partir de suas ruas, praças, zona portuária, tipos populares, vielas escuras e malcheirosas. Uma clara antecipação do que os poetas modernos fariam mais tarde. Um pêndulo entre o sonho de evasão, de escape e o senso do real.

Essa imagem do fio, do labirinto da memória e da escrita, também me é cara. Sinto-me uma tecelã, uma fiandeira de textos. Escrevi: “Sou uma fiandeira, tecendo noite e dia, uma esteira de pensamentos. Sou uma fiandeira, aranha que tira de dentro a liga que emaranha.” De uma alta torre, manejo tramas numa roca de fiar. A memória, principalmente as recordações da minha infância, numa terra profunda do sul de Mato Grosso, de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, é verdadeiro tesouro, coluna vertebral de minha personalidade. A memória é tão fraterna! Como naquele título de um livro de  Lygia Fagundes Teles, Invenção e Memória, o escritor trabalha com essas duas ferramentas o tempo todo. Acrescente-se a isso doses de emoção e a técnica que as Parcas tinham ao fiar os destinos.

A Estética é uma ciência que me encanta. A busca do Belo. O desenvolvimento da inteligência, da intuição, da sensibilidade, que são inatos. A educação do gosto através do estudo, do esforço, do aperfeiçoamento. É o Amor quem cria a Beleza. Sou também apaixonada pela beleza da Língua Portuguesa, idioma da minha expressão poética.

Meu processo de criação envolve disciplina, abertura de clareiras nos afazeres diários para que eu encontre no bosque a fonte de onde jorram as ideias e as palavras. Tenho cadernos grandes, onde vou colocando temas, frases, fotografias e, depois, vou selecionando, escrevendo ora um poema, ora uma crônica, ora uma mensagem aos mais misteriosos destinatários. Formo pilhas de livros para leituras, pesquisas, trocas de correspondências, pois a comunicação com meus colegas de ofício me alimenta, é vital para mim. Elaboro guias de tópicos ao lado do computador. Tenho necessidade de total silêncio, de solidão, na companhia dos meus gatos.

Fernando Andrade: Como é trabalhar um assunto ou tema onde ele não se esgota por si mesmo. Me fale mais desta livre associação de ideias que parece quase um registro de sonhos, fragmentos.

Raquel Naveira: Alguém comparou minhas crônicas aos poemas em prosa do livro O Spleen de Paris, obra póstuma de Baudelaire, publicada em 1869. Fiquei feliz e lisonjeada.
Baudelaire desejava um novo código de escrita. Abandonou a obrigatoriedade do verso e chegou ao poema em prosa, a uma fusão de gêneros. Estou nessa área de experimentação. Escolhido o assunto ou tema, penetro em várias camadas: simbolismos, bagagem cultural, sonhos, imagens. Algo delirante e, ao mesmo tempo racional, feito de caso pensado. Sou muito visual, descritiva. Gosto de “ver” aquilo que escrevo, como se tivesse uma câmera na mão. Sensacionista e intimista como o heterônimo Álvaro de Campos, do escritor português, Fernando Pessoa. A sensação é sempre o primeiro passo e, depois, habito nas paragens que crio.

Fernando Andrade:  Você se faz pelo seu repertório de afinidades pela leitura dos amigos, conhecidos. Ler também é coletar miudezas e pérolas para montar este leque com tantas possibilidades de olhares?

Raquel Naveira: A minha paixão pelos livros se transformou uma carreira de Magistério. Assim como outras escritoras como Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Adélia Prado, dediquei-me à Educação. Dei aulas por mais de quarenta anos. Continuo visceralmente professora. Poesia e Magistério são vocações unidas, interligadas, onde os livros se abrem e deixam sair seus sonhos e realidades. Foram gerações de alunos, muitos dos quais hoje também são poetas e professores. Por força mesmo da profissão, a Literatura ocupou papel preponderante em minha vida.

Como disse, gosto do diálogo com outros escritores: com os mais jovens, os contemporâneos (aqueles que nos entendem) e os mais velhos. Com os vivos e os mortos, pois a Literatura não é sincrônica, é sinfrônica, atemporal, universal. O filme da minha vida, que me fez rir e chorar, foi O Carteiro e o Poeta. Neruda exilado em sua Isla Negra, recebendo e enviando cartas para o mundo. Cartas como bilhetes em garrafas atiradas ao mar. Em tempos de internet e conexão, navego por ondas e galáxias.
É sempre instigante fazer novas descobertas, contatos, amizades.

Voltemos à fiandeira. Quando pequena, minha avó tinha uma máquina de costura cheia de almofadas de alfinetes, de gavetinhas com linhas, agulhas, miçangas, canutilhos…
Era lindo vê-la bordar vestidos e cortar véus de tule. A poesia é mesmo assim: pérolas nas rendas do leque. O leque é uma metáfora de minha mãe, que se foi recentemente: vaidosa, sedutora, eternamente bela.

Fernando Andrade:  Tem uma música com letra da Alice Ruiz cantada pela Ná Ozzetti chamada de Baú de Guardados. Se você fosse fazer o seu; o que sairia dali ou que colocaria lá para um futuro livro, ou até este que leio? 

Raquel Naveira: O leque que originou o livro Leque Aberto estava no baú de guardados da minha memória. Coloco lá todos os dias pétalas de flores de cerrado e muitos afetos. No momento, estou fascinada por um pé-de-manacá que dá flores roxas, em frente da minha casa. Manacá será o título do meu próximo livro de crônicas/poemas em prosa. E também por uns caramujos que soltam rastros cintilantes quando chove. Só não quero guardar esqueletos, nem mágoas ou falta de perdão. Tudo está guardado no meu coração, na minha mente, como contas de vidro coloridas. Quero só continuar jogando com elas.

MINIBIO

RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.

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