Fernando Andrade entrevista o poeta Rogério Bernardes

Rogério Bernardes - Fernando Andrade entrevista o poeta Rogério Bernardes

 

 

 

 

Fernando Andrade: Dentro da sua estética de escrita, o que é o poema para você?

Rogério Bernardes: O poema, para mim, é a forma mais bonita e, ao mesmo tempo, a mais incompreendida, de decalcar o mundo ao limite de uma escrita. Como eu acredito na Poesia (e gosto de escrever com P maiúsculo mesmo) como algo que está em todos os lugares, entendo que um poema pode ser sobre qualquer coisa. Até mesmo sobre o nada. Vazios dão excelentes versos.

Poemas foram a forma mais próxima de uma terapia pessoal que eu encontrei para lidar com tudo que me cerca, de dores a alegrias, de traumas a lindas memórias. Desde o que sinto até o que, por empatia, tento trazer para a minha pele, tudo pode ser dito em um poema, que é muito mais que um conjunto de versos com alguma estrutura. Como a minha estética não prevê regras pré-definidas, e também por não ter uma formação acadêmica na área literária, sinto-me muito livre para trazer a Poesia a qualquer cômodo do meu corpo, e para abrir quaisquer das minhas portas e janelas aos versos que vêm sempre espontaneamente aos meus dedos. No dia em que eu precisar definir algum poema meu em termos técnicos, acho que deixo de ser poeta. Escrever terá perdido a graça para mim.

Fernando Andrade: Imagens podem ser uma escrita tão sensorial quanto uma lembrança. Como você escreveu este livro que me faz pensar num corpo táctil sobre percepções, afetos, sensorial-idades sobre a vida, mas perto do que ela fica na pele, no tato, no gosto, nos cinco sentidos que você capta tão bem ao elaborar sua história. Me fale um pouco desta elaboração do afeto no livro?

Rogério Bernardes: Eu preciso sentir para escrever. É tão natural quanto beber água quando tenho sede, porque decidi que não quero me entender, mas me aceitar e respeitar todas as minhas idiossincrasias cada vez que eu sentir algo, não importa se um sentimento bom ou ruim.
Escrevo para desenvolver um autoafeto, por assim dizer. Nessa busca, a memória é a ferramenta mais poderosa de que disponho. ‘O que não sangrou no caminho’, meu último livro, foi escrito com essa minha “missão” acentuada sensivelmente por tudo o que tem acontecido conosco desde o início da pandemia de COVID-19. Primeiramente vieram o medo e isolamento, algo bastante retratado no meu livro anterior, ‘Não servirei de alimento aos abutres’. A partir de então, esse medo passou a ser o de perder quem eu amo, e até mesmo as lembranças que fazem de mim quem eu sou. Veio então um exercício tão espontâneo quanto necessário de resgate. Trouxe para o livro minha infância e juventude, minha família, minha cidade natal, meus traumas e minhas mais vívidas lembranças, a maioria agridoces. Não é um livro autobiográfico, no entanto, porque cada vez que evoco uma memória, trago nos versos a vida de tanta gente, reconstruo belezas e escuridões de tantas pessoas que nem mesmo conheço! Quando trago meus afetos na maioria dos poemas do livro, meu corpo inteiro responde, porque lembro de cheiros, texturas, visões, vozes… a memória, para mim, não é apenas um conceito abstrato do cérebro, é algo que mexe com todos os meus sentidos.
Quando eu sinto tanto assim, a Poesia se manifesta de imediato. Escrevo justamente para nunca esquecer. Acredito que seja a maior prova de amor que eu possa dar aos meus que já se foram: eles voltam a viver nas linhas dos meus poemas. Provavelmente este é o livro em que essa necessidade está mais explícita.

Fernando Andrade: Queria que você falasse do discurso narrativo, nos seus poemas, onde o elemento lírico trabalha junto aos fios que você vai tecendo como as linhas de Ariadne que formam ou não o labirinto de uma ficção. A poesia também me parece existir nesta forma circular de um labirinto. O que você acha? A memória também teria esta formatação?

Rogério Bernardes: Acho que eu escrevo a maioria dos meus poemas como pequenas narrativas, e faço isso de forma muito inconsciente, embora constante. Preciso dar uma cara ao eu-lírico e uma ação a ele, para sentir que o poema traz algo vivo por dentro. E quando escrevo sob essa perspectiva, não me limito em relação a número de versos e de estrofes, muito menos em relação a alguma forma fixa. Quanto mais fluida é a sucessão de palavras que vou tecendo, mais à vontade fico para finalizar aquele texto. Para encontrar a saída do labirinto, eu preciso explorar todos os cantos possíveis dele até o destino final. Não me importo de, no caminho, descrever as paredes onde bato, o chão onde escorrego, as entradas e saídas falsas por onde erro até acertar. A memória não é um pensamento em linha reta, então eu me deixo enrolar nos novelos da minha trajetória. A Poesia, como a vida da gente, tem tantas formas e se desdobra em tantos caminhos! Eu apenas os aceito e sigo escrevendo (e vivendo).

Fernando Andrade: Há um espaço topográfico onde você faz um trabalho de elegia sobre pertencer, mas ao mesmo tempo há uma viagem ou um pouso para um outro lugar presente. O espaço físico não é o mesmo do espaço mental ou é? E o poético como faz estas ligações entre o que foi, o que é e o que será?

Rogério Bernardes: Preciso escrever, muitas vezes, sobre o que sou, o que tenho e a linha que seguro e que me levará até algum lugar que ainda não conheço. No entanto, justamente por saber que não sei nada sobre o minuto seguinte, eu me permito construir possibilidades e também descartar universos aos quais não quero pertencer. Não há melhor lugar para esse exercício que dentro da Poesia, em minha humilde opinião. Então eu posso escrever um poema realista sobre uma dor coletiva que vivemos logo após um outro sobre ilações puramente minhas e que não farão sentido algum a outra pessoa, porque é sobre algo que nem existe. No espaço físico da poesia, posso falar da minha dor e a do outro; no espaço mental, posso falar sobre dor nenhuma, apenas sobre metáforas inventadas para fazer uma viagem a lugar que nem existe, só mesmo nos limites dos versos. Muitas vezes o espaço físico e o mental coabitam; outras vezes, a mente pode nos levar a lugares desabitados de nós mesmos.

Às vezes, tudo o que eu menos quero ao escrever é delimitar espaço e tempo. Posso escrever versos sobre tudo o que não foi, tudo o que não é e tudo o que não será. Tornar real o que nunca vivi ou viverei. Nos versos, tudo é experiência. Às vezes eu não quero visitar corpo nem memória alguma, apenas a palavra.

Fernando Andrade: Para você o corpo é uma escrita e porquê?

Rogério Bernardes: O corpo é um compêndio, uma enciclopédia. Quando temos a chance de envelhecer, descobrimos isso. Em cada ruga que chega, em cada cabelo que perco, em cada grau maior de meus óculos, estou escrevendo a minha saga pessoal. Não aproveitar essa multitude de dias, memórias, vitórias e derrotas, (des)amores, medos e coragens, perdas e conquistas, seria um desperdício de valor incalculável para quem escreve. A memória faz parte do corpo, porque é com ele que vivenciamos tudo o que depois lembraremos. Por isso tenho tanto carinho com os meus poemas sobre memória: é a minha coleção de livros não publicados apenas, porque escritos já foram todos, em cada centímetro da minha pele. Meu maior ato poético é seguir vivo.

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