A linguagem ficcional do alfinete | José Fontenele

Fernando Andrade A janela é uma transversalidade do corpo - A linguagem ficcional do alfinete | José Fontenele 

 

 

 

José Fontenele – escritor, jornalista e produtor cultural

“A janela é uma transversalidade do corpo” (Editora Penalux), do crítico e poeta carioca Fernando Andrade é um livro de contos que também poderia ser poesia, fragmentos de um romance à la Campos de Carvalho, ou mesmo pequenas cenas teatrais. Sem seguir regras (ou melhor, incluindo nova referência), a experimentação aguçada do autor cria uma obra diversa nos mais variados sentidos. E isso é sensacional, tanto pela coragem da criação, quanto por chacoalhar qualquer suposta convenção de que as linhas (tão importantes ao autor), delimitam algo, quando na verdade, como bem observou Guilherme Preger, no prefácio do livro, linhas são linguagem.

Dividido em duas partes, Ficção e Desejo/Corpo, o autor revisita no novo trabalho temas constantes em sua obra, tais como: a atenção pela geometria e como suas linhas, desvios e ângulos permeiam o cotidiano na criação de histórias; a busca de algo (uma história, uma cena) encerrada dentro da própria palavra, como um constante exercício poético de reinterpretação do léxico ao nosso redor e da musicalidade (outra marca da obra dele) contida na lógica palavra-puxa-palavra; o banal-fantástico, aquele momento que não serviria à memória, mas que com roupagem fantástica (roupa de linguagem), passa ao maravilhamento; e mesmo o sensual do ser, uma vontade inata, potente, corajosa, mas também baixa, ralé, a constante montanha-russa do corpo.

A diferença é que se antes Fernando Andrade trouxe esses temas em sua poesia, agora encerrou contos que vão do lírico ao pop, do barroco ao naturalismo, dos ratos à Psicanálise (outro tema caro ao autor), por veredas surrealistas que lembram muito o rastro ficcional todo particular Campos de Carvalho. O autor mineiro, cujas obras possuíam títulos curiosos como “A vaca de nariz sutil” ou “A lua vem da Ásia”, teria adorado “A janela é uma transversalidade do corpo”, e sua forma poética, angular, e também sisuda, provocadora e retilínea quando necessária.

Outro toque poético que Fernando Andrade imprime em sua ficção são as aliterações, assonâncias e jogos de palavras, que passam da margem ao centro da própria história, convertendo-se em motivo do próprio texto. É possível encontrá-las desde o conto que dá nome ao livro, a outros como “A máquina – cabine de arroba”, ou “Tem-se o início a linha de um conto”, só para citar alguns. Brincando com a própria ficção, o Eu Lírico ficcional ainda provoca no texto “Uma carta da poética convidando a prosa para uma estadia de veraneio”, que termina com uma interessante forma de classificar (talvez) seu próprio livro. Diz a poesia: “Deixe tudo em tom mimético pois sou boa de meter fora todo o lixo que existe de porcaria de palavras mal servidas tanto no café como no jantar. Aqui é só metáfora. Bom já falei tudo, best beijos bestiários. Hoje é dia das bestas.”

“Qual é a relação do pensamento quando cai no corpo?”, é primeira linha-pergunta da segunda parte do livro (desejo/corpo), e funciona como questão e parâmetro para toda essa parte. Fernando experimenta histórias com pulsos diversos, desde “Ana vai defecar” até “Ode aos ratos”, passando pelo primaveril “Beijo com goiabada”. O conto final dessa segunda parte, “Uso e Gênero na questão do alfinete”, traz outra pequena epifania literária: “Gente cordeira precisa ser alfinetada.” Que poderíamos entender (e concordo) como “leitores cordeiros precisam ser alfinetados”.

Por fim, “A janela é uma transversalidade do corpo” é como esse alfinete do parágrafo anterior, um alfinete de linguagem, pontadas de um Eu Lírico que, também no conto, não se contém, extravasa, experimenta o surreal, quer descobrir a história dentro da própria linguagem. Leitura mais do que recomendada. E se não se contentar, procure os poemas do mesmo autor, são valiosos.

Texto de José Fontenele – escritor, jornalista e produtor cultural.

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