Entrevista com a poeta Jade Luísa

JADE LUISA - Entrevista com a poeta Jade Luísa

 

 

 

Fernando Andrade entrevista a poeta Jade Luíza

 

FERNANDO ANDRADE: Se vê muito pouco na poesia que se faz hoje um erotismo ligado ao corpo, mas também, combinado à outras estéticas como uma poética lunar e hibridizando tudo nas imagens sobre animalidades. Como foi esta relação entre estas paisagens e como é o trabalho da carpintaria da escrita, de matizar tudo?

JADE LUÍSA: Penso que corpo e palavra estão ferozmente conectados. Seja o ato de pensar a palavra, o caminho que ela faz dentro do corpo até virar voz ou desenho, ou seja a forma como o corpo responde à palavra que ele próprio gesta. E pensando na anatomia das palavras, me encantam as possibilidades de se brincar com imagens poéticas enquanto corpos vivos, e corpos não apenas humanos, mas qualquer tipo de corpo que habita um espaço natural. Nesse sentido, é a tentativa de sobrepor e amplificar corpo e palavra, para além do erótico, que guia a investigação narrativa-poética do olho esquerdo da lua.

O processo de carpintaria da escrita foi um tanto solitário em razão do isolamento, um tanto triste, já que essa brincadeira de poesia-corpo funcionaria bem se conhecesse as ruas, outros corpos e outras vozes. Enfim, fica o desejo de botar o livro para passear, ver gente.

FERNANDO ANDRADE: A tua capacidade de expressão através da linguagem visual torna sua poesia muito polissêmica no sentido que você atravessa tanto os mitos narrativos, como certa preocupação cênica com o espaço gestual no texto. Há uma certa relação de campo e de profundidade que faz seu texto ganhar um corpo bem táctil. Fale disso.

JADE LUÍSA: Imagino que as percepções tácteis dos textos tenham origem na minha relação com o teatro, também escrevo alguma coisa de dramaturgia e sou atriz do coletivo de teatro Enleio. Por isso, minha escrita envolve a figuração de um espaço cênico ou pictórico, algo que conjugue outras manifestações estéticas com ponto de encontro num corpo, no caso, um corpo de mulher [ora humanoide, ora animalesca, transfigurada em maré, em lua-cheia].

Como disse, me interessa a relação corpo-palavra, seja um corpo humano ou não humano.

Grace Passô em Vaga Carne trabalha com a palavra autônoma, com uma voz que vaga e encarna em tudo o que ela quer encarnar. “Ei, bichos ferozes! Vamos invadir o corpo dessa mulher com palavras!”.

E enche de palavras o corpo de uma mulher negra.

Gosto desse movimento de botar palavras nos corpos, e de perguntar quais palavras já estavam lá antes. É a palavra improvável e habitada o que tenho buscado, por enquanto, na minha escrita.

FERNANDO ANDRADE: Queria que você falasse do corpo que ultrapassa o aspecto biológico, não é um corpo descritivo, nos seus poemas, ele vem embalado por metamorfoses semânticas sobre o universo, o entorno, como uma relação de mistura que não vejo ser litúrgica no sentido do religioso, exato. Algo mais, antes de uma filosofia Pré-socrática? Onde a religião ainda não explicava nada. Fale um pouco desta questão.

JADE LUÍSA: O corpo nem começa nem termina em si mesmo. Para além de uma questão espiritual ou religiosa, mas fincada no solo da História. Penso num corpo sobretudo histórico e coletivo, com memórias coletivas e intersecções que de fato atravessam a esfera individual, mas de forma alguma se mantêm estáticas, ensimesmadas.

E entender também a natureza – ao lado dos corpos humanos – como alvo da colonização e da máquina capital sugere um leque de possibilidades que a sociedade branca ocidental (e eu) ainda desconhece, como o movimento de atentar-se às facetas literárias e poéticas da natureza, do universo não humano.

Quer dizer, penso inicialmente o corpo enraizado na História para que, a partir daí, seja possível extrapolar a escrita em direção ao que permanece ininteligível. Os corpos são reais, o vislumbre do fantástico é gracejo da palavra.

FERNANDO ANDRADE: Qual é a atração que a lua exerce sobre você no sentido da criação ou estética de imagens que podem, quando não bem usadas, cair num certo lugar comum ou clichê?

JADE LUÍSA: Uma atração de espanto. Intimidade. Assombro.

A primeira vez que li Os favores da lua, poema em prosa do Baudelaire, senti um bocado de raiva, confesso (eu queria ter escrito aquilo, oras!). Hoje acho que isso foi bom, raiva é um sentimento maiúsculo, e raiva de poema? só sente quem também sabe se apaixonar. A leitura do poema me fez entender algo que nada antes tinha explicado, logo pensei “devo ser dessas lunáticas…”

A lua é um tanto irônica e deleitosa, me arrisco a dizer que no mundo não há poeta que tenha resistido à tentação milenar de palavrear a lua.

Mesmo a antiga Safo – cai lua, caem as plêiades (…)
A contemporânea Dione Carlos – talvez exista uma fase da lua que a gente ainda não percebeu (…)

E a querida Daniela Devisate – lua ingrata! velha irmã!

Como tantas poetas, acabei por também tropeçar numa armadilha lunar. Um tropeço gostoso, devo confessar. Se não flerto com clichês é porque não me interessa a palavra que diz mais- do-mesmo, mas permaneço enorme e humildemente curiosa pelo rasto de lírica que a palavra derrama por onde passa.

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This Article Has 1 Comment
  1. Lourença Lou Reply

    Parabéns só entrevistador que soube fazer transbordar o que fervilha nesta poeta fantástica, nesta menina poeta, que é Jade Luisa. Sua entrevista tinha que ser assim: profunda, lunática, corpórea, como ela.
    Abraços nos dois.
    Lou

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