Dois poemas de Sophie Gaden

Sophie Gaden - Dois poemas de Sophie Gaden
Sophie Gaden é francesa e brasileira, escritora e professora. Em 2019  se formou em Literatura e Escrita Criativa na Universidade de Lancaster na Inglaterra. Hoje, trabalha como professora de inglês e literatura em Londres. Sophie escreve poemas e contos; foi recentemente publicada na Horizon Magazine. Ela mantém contato com o Brasil e escreve nas duas línguas, português e inglês.

 

 

 

 

Espelho d’água

me havia-me esquecido
me encontro em cantos solitários
mergulho no espelho d’agua
água viva
banho de rio
peixes nos cantos das pedras
bolhas de água
borbulhando
dança de roda
laranjas de manhã
laços açúcar
sou eu que invento
a minha vida
tudo ao meu redor
amarelado
banhado de sol
pés sujos de lama
tempos de semente
girassol solitário no meio do campo
molhado de chuva
das mãos crescem invenções
sussurro do vento que vem de longe
últimos rastros de sol nas montanhas
grilos cantando no roxo do dia
portão quebrado, madeira apodrecida
estrelas, sombras e postes de luz
riquezas feitas de nada
brotam dentro dos olhos
canções no escurecer
piscar de olhos vagalumes
vida de sapo no canto dos lagos
ciúme de inseto
as casas acesas
cheiro de mato
suspiro de flor
broto branco
arranha
na cabeça também crescem pensamentos
como mato que impede a flor de nascer
passos leves, correndo, voando
saltando na terra vermelha
memórias de saci
pão quente café torrado
fogo às seis da tarde
cheiro de madeira
galhos crepitando
lembranças guardadas – cheiro de baú
mergulhar na noite, nas estrelas
se lembrar, acordar, como na a água do rio gelada
peixes nos cantos das pedras
bolhas de água
borbulhando
dança de roda
laranjas de manhã
laços, açúcar
do coração cresce vida
se agarrar na vida como planta trepadeira
na beira das casas
estar perto da vida, suja de lama molhada,
coberta de flores, perto do coração,
perto das coisas miúdas, perto do cantos dos pássaros,
perto do som das asas das abelhas,
perto do desejo, perto dos ciscos, das areias, das poeiras
perto da pele, da fome e da sede
leito da vida

 

Margarita

Margarita fugiu muitas vezes de casa,
saia bem cedinho as seis da manhã, enquanto a lua empalidecia,
abria a porta bem devagarinho, tentando diminuir o seu ruído.

Queria se esquecer de tudo que sabia,
redescobrir o mundo,
estar perto de um mistério.

Ficava perto das montanhas porque eram grandes, e ela pequena.
Brincava entre o sol e as sombras,
jogava a pedra no lago só para ouvir o silêncio depois do susto da pedra batendo na
água.

De pernas compridas, corria pelos campos de lavanda,
procurava sempre o antes e o depois,
primeiros e últimos:

o primeiro pássaro a cantar,
a última olhada na lua antes dela sumir,
o último círculo da pedra jogada na água

a última gota de chuva depois da torrente.
a primeira estrela do anoitecer,
o último pensamento antes de dormir

a primeira lembrança enquanto gente
o momento que um estranho vira amigo,
ou que um amigo vira estranho.

o primeiro escuro da noite
o último momento de uma vela acesa, de uma flor desabrochada,
a último uma vibração de um som que podia ouvir,

o último momento em pé antes de escorregar,
o último instante da dor ao se machucar,
o único instante que possamos voar antes de cair

o último instante antes de exalar
o instante antes de dar um passo,
de pronunciar uma palavra, de fazer uma escolha

o momento antes de colher a flor.

Margarita estava sempre lá
 ao observar os começos de frases,
os depois dos silêncios,

a brecha entre uma coisa e outra
sempre buscando algo que acabava por escorregar
por entre seus dedos de menina.

Quando Margarita cresceu,
se esqueceu deste hábito estranho
de perseguir os começos e fins,

mais as pessoas repararam que ela sempre
parecia estar um segundo atrasada em suas repostas,
seus olhos passeavam pelos rostos das pessoas

seu sorriso era demorado

às vezes não se sabe se era um sorriso
ou um olhar.

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  1. Roberto Monteiro Reply

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