Envenenado | por Luiz Eduardo de Carvalho

Gabriela Incidente ofidico - Envenenado | por Luiz Eduardo de Carvalho

 

 

 

 

Gabriela Ruggiero Nor, poeta que trabalha com escuta de mulheres, traz, em seus versos de Inci-dente Ofídico, uma possível síntese dessas tantas vozes femininas que perpassam o mesmo prisma do autoconhecimento mediado pela realização da potência feminina debelada, já que aprisionada em uma sociedade estruturada por claros e rígidos modelos patriarcais.

Traça-se, com isso, a imagem especular de um eu lírico que, apartado da livre experiência e da plena realização dos desejos, sublima, em versos de brando erotismo, a própria sensualidade projetada em poesia que apresenta explícito aprisionamento aos limites comportamentais impostos em contraposição aos desejos contidos.

Movimento da libido em sutil revelação, não do que é necessária e estritamente sexual, mas de tudo o que é vital no reconhecimento de ser mulher em uma reta na qual se caminha prenhe de movimentos que não se pode saber fazer. E são muitos os interditos: do olhar atento de nosso senhor na cruz, ao sacramento do casto casamento, passando pelo cerco de uma educação encapsuladora sob o zelo de pais atentos e até mesmo pelo juízo alheio no olhar do próprio amado. Na moral, na religião, nos costumes, nas circunstâncias, em tudo, pulsa o desejo contido do autoconhecimento sob o espelhamento dos desejos mais vitais que a realidade interdita, mas que a arte resgata em versos que os refletem em prememte extrusão.

Sem os contornos formais de tal escola (com já fez Hilst), de certa forma, Incidente Ofídico resgata o clamor trovadoresco das cantigas, evocando a presença do idílio distante, não na forma personificada do ser amado, contudo na do próprio desejo apartado de suas vias de consecução. Latência e expectativa norteiam o chamado que sequer se concretiza em convite, restando indício que, em poesia, firma-se símbolo da própria espera, a qual, em seu platonismo subjacente, não só expurga qualquer intento real da busca enunciada como também se fecha renitentemente à anunciada perspectiva de permeável acolhida.

Um conflito pulsante, primário, Eros e Tánatos, sob uma perspectiva tantalizante, pois, a cada esforço na direção da consecução do desejo latente, corresponde o afastamento da concreta realização. Um jogo quase lúdico de cabo-de-guerra, esconde-esconde, barra-manteiga, pega-pega ou outros que ensaiam o contato sem, contudo, realizá-lo na potencialidade de seus desenlaces naturais, primitivos. Sutil sinal e inequívoca denúncia de uma sexualidade feminina forçadamente mantida, por imposições sociais, sob perspectiva contida, submissa e pueril.

As mulheres representadas na voz de Gabriela, síntese de tantas que ela decerto ouviu, oferecem a média do gênero: milênios de castração num mundo patriarcalista em que a liberdade feminina, inclusive a de ser mulher, foi substituída pelo casto contrato de posse a assegurar a legitimidade dos herdeiros do lixo moral e material que se acumula à sombra dessa e de outras atrocidades e mazelas da humanidade.

De súbito, além do meio volume da obra, sucumbe o hesitante Eros sob o imperioso Tánatos, potencializado do momento, travestido dos medos pandêmicos que arremessam a figura feminina às lidas do exílio na reclusão do lar e evidenciam a presteza de seus protocolos de mães, esposas, donas de casa.

De cortar as unhas da filha que crescem e certificam não se tratar de sonho, ao arrepio ante a lembrança do toque excessivo dos convidados, o pesadelo perpassa outras podas da energia básica pulsante da vida em sua expressão mais natural. No reverso do mesmo espelho de antes, é novamente a libido tolhida sob o piso brilhante do domínio da família (e de Deus, e da tradição, e da propriedade…). A forçada reclusão evidência o que vive recluso de qualquer forma.

No espaço das paredes sem jardim, sem sacada, sem saída, contém-se o fluxo de um riacho límpido que atravessa o território infestado de morte. Ali, encastelada, a ânima idealizada pelos masculinos desígnios desposa o rei e pari seu herdeiro com a mágoa antiga de não ter podido ser e querendo seguir sanguínea e longínqua do perpetuado modelo de filha em já sendo mãe.

Mas não se enganem, senhores, esse lar-corpo-jaula guarda uma serpente com afiado dente pronto ao incidente que, a qualquer momento, inocula seu veneno ofídico na corrente sanguínea da libertação. Ainda latência, já ameaça: bate à porta cerrada o mistério do autoconhecimento ávido pela igualdade de autorrealização.

Com tanto conteúdo denso escrutinado e decupado, dispensam-se as loas ao estilo sóbrio e elegante da composição da estreia dessa muito bem-vinda poeta, Gabriela Ruggiero Nor que, saindo do ovo da serpente nos presenteia com o seu Incidente Ofídico.
Veneno maior, dos mais potentes, guardado em menor frasco na primorosa edição de bolso da Editora Hecatombe, na Coleção Quem Dera. Inoculem-se!

 


Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor de arte e cultura, gestor cultural nos âmbitos público, privado e do terceiro setor. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária. Publicou: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá; Quadrilha (2020 – novela) pela Editora Patuá; Frasebook (2020 – aforismos) pela Edições Karnak; Evoé, 22! (2021 – dramaturgia) pela Editora Patuá.

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