Fernando Andrade – Com a ficção, como pessoa ou personagem? | por Caio Garrido

capa fernandocapa A janela é uma transversalidade do corpo 160821 1 scaled - Fernando Andrade – Com a ficção, como pessoa ou personagem? | por Caio Garrido

 
 
 
 

Caio Garrido | escritor e psicanalista

É concebível pensar após uma leitura atenta de “A janela é uma transversalidade do corpo”, logo de início aqui neste posfácio, que Fernando logo busca indicar ao escrever a palavra“fios”na página em branco, que é através dela – e dos usos da palavra – que torna-se disponível ao autor “urdir linhas possíveis”.
O título do livro sugere uma linha móvel que atravessa corpo e projeção de uma imagem ao qual um sujeito pode ver, olhando fora. Olhando pra fora. Pode ser pela janela. Podendo também se ver. O corpo atravessado por esse infinito-fora.
Que linha que vai do corpo ao símbolo? Os impulsos? Ou do objeto ao corpo? Os estímulos?
Fernando escreve como alguém que está à procura de algo que se perdeu, e que ao recuperar a própria potência através da escrita, encontra alguns de seus “objetos” perdidos ao longo da existência. Deixa de ser um palíndromo, como a personagem “Ana”, deixa de ser uma busca circular, para se encontrar.
O texto é atravessado por linhas, retas, pontes, circulares, pontos, no qual não é possível pensá-lo sem o uso (ainda que precário) desses símbolos matemáticos.
Como nos diz Fernando em um de seus textos: “O tiro é um pensamento que saiu pela culatra”. Toda a força que Fernando impõe em seu texto é a busca de sentido, onde o objetivo é parir pensamentos, e não transformá-los em seu contrário. Fazer com que a reta ou a linha que o trem da vida desenha não se encontre com o terror pronunciado por seus agentes persecutórios – quando ele tenta não pensar em determinado conto, em que “um personagem anda pela linha férrea até ser espancado por um grupo de desordeiros”. Um desencontro.
Um “deslocamento de circulares” – como nos é mostrado através de seu primeiro texto no livro – não é só o deslocamento de ônibus que leva pessoas de A para B. Esse movimento em linha e “circular” demanda outros movimentos do pensamento. O círculo demanda um dentro e um fora, uma busca contínua de salvação. Do próprio corpo e sua danação, pois precisa atingir um ponto. Um ponto fora. Ainda que o ponto represente um não-estar-lá. A fonte de algo primordial que deveria estar em um lugar e não se encontra lá.
O amor e o eremita ao final desse primeiro texto indicam a presença do objeto amoroso, o endereçamento do afeto, mas nem sempre a sua realização. A “carta do amor” ainda não é a consecução do amor. O eremita é alguém que consegue o feito de endereçar o amor a si e ao corpo universal de todos os homens sem a necessidade da presença desses todos. Como nos diz Drummond: “Que pode uma criatura senão/ Entre criaturas, amar?” Esta, a nossa direção e destino: “Amar sem conta/ Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas/ Doação ilimitada a uma completa ingratidão”.
Mas como ser um eremita é pra quem pode, não pra quem quer, podemos seguir com nossa literatura, que é uma forma de amar e conhecer, e uma forma de doação inefável através daquilo que a gente tem, ou com aquilo que a gente ainda não tem, e que a gente descobre ao escrever ou lendo. “Amar é dar o que não se tem”, diria Lacan.
É pegar um pedaço da lua – como o narrador-personagem de Fernando – e transformar essa matéria aparentemente “conhecida” em não conhecida. E aí a gente se descobre tendo esse pedaço em mãos, essa falta que nos pertence. E depois brilhantemente há um novo movimento de transformação de matéria desconhecida em uma outra coisa, um novo objeto. É o que salta aos olhos do leitor: Essa transformação de um pedaço de lua em “matéria desconhecida”. Ao depararmos com essa matéria na página, sentimos como o chinês, o húngaro, ou o canadense ali descritos, que ao olhar para o pedaço lunar, sem saber, disseram: ‘matéria desconhecida’. E em teoria, ao dizerem isso, nomeiam e transformam o objeto antigo e opaco em uma coisa totalmente nova e iluminada e ainda em aberto, não saturada.
Esse tipo de transformação que Fernando realiza através da literatura me faz lembrar de uma obra de um psicanalista chamado Wilfred Bion (1897 1979): “Transformações” (1965). Lá ele fala sobre linhas, retas e pontos. E dentro desse escopo, a visão que Bion expressa ao associar pontos e retas em sua teoria é a de considerá-los como incógnitas.
Parte da busca de Fernando me parece ser a de ir em direção a essas incógnitas (geradoras de angústia), aparentemente despojadas de significado, mas que com o auxílio da linguagem diacrônica de sua literatura, pode alcançar ou tentar encontrar significado e significações, em acontecimentos antes aniquilados de significado. A literatura como esperança, como fonte de esperança.
Nesse sentido, ainda se aproximando e apoiando em Bion, podemos dizer que os personagens muitas vezes dão vida a seus autores. Não só os autores que dão vida aos seus personagens. Quem já não ouviu um escritor dizer do quanto ele depende de sua escrita? Do quanto que pra ele escrever se confunde com o viver? Pois uma coisa que Bion dizia, citando personagens de Shakespeare para isso, é que existem personagens (“desprovidos de existência real”) que possuem mais “realidade” do que pessoas que existiram de fato. Quantos “Pessoas” existiram e existem em Fernando (s)?
A universalidade que os efeitos da literatura (para quem escreve e para quem lê) tem sobre as pessoas guarda relação com o fato de que aquilo que outrora “não estava lá onde deveria estar”, passa a ter um lugar, e mais apropriadamente um lugar mental. A fonte de nutrição de pensamentos que passa a ter um lugar de existência no corpo. Literatura como janela e corpo.

*Caio Garrido é psicanalista e escritor. Autor de quatro livros (o último, o romance “O Bom Cristão”), e mestrando pelo Programa Interdisciplinar em Ciências da Saúde pela Unifesp. Prepara atualmente um livro (Proac) de crônicas – “Paniricocrônicas: Crônicas dos sonhos em tempos de pandemia”. E um livro em fase de pré-publicação sobre a “Nova Era Tecnológica” – um olhar psicanalítico e social sobre as redes sociais, inteligência artificial e realidade virtual.

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