Entrevista com o escritor Léo Tavares

léo tavares - Entrevista com o escritor Léo Tavares

 

 

 

FERNANDO ANDRADE:  Falta e desejo parecem nos seus contos criar um jogo de forças onde os personagens através da sublimação da arte tentam contornar a pesada condição humana para aquela ideia de carregar rochas montanha acima. O peso da racionalidade do viver parece se conflitar com a fruição ou beleza de um estado ou estética do sentido, aqui na capacidade total do sentir e não tanto do significar. Como foram estas costuras entre um mundo racional e uma intensidade desejante?

LÉO TAVARES: Walter Benjamin, em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem disse: “basta um rumor de folhagem para que ressoe junto um lamento” e posiciona a melancolia como aquilo que se sente conhecido pelo incognoscível. É, antes de tudo, ele diz, a natureza. Creio que tenham surgido dessa leitura as primeiras ideias para esse livro de contos, e que talvez o centro dele seja mesmo essa negociação utópica entre o dizer (ou o mostrar) e as coisas que resistem à linguagem, seja ela a linguagem verbal ou as linguagens da arte. O peso da racionalidade do viver está de algum modo firmado também na criação estética, que é sempre uma transposição de fragmentos e de impressões de algo que não tem necessariamente um nome, mas que a gente chama de muitas coisas, como o sentimento diante da beleza, o sentimento diante da falta, da ausência, e diante do desconhecido, do oculto. Falar sobre arte é um desafio porque a arte lida com o inapreensível e nos coloca em falta com a linguagem. De algum modo, é tão difícil quanto traduzir a melancolia. Particularmente, penso que existe uma associação primordial entre arte e desejo, e que essa intensidade desejante tem sempre o clamor da pergunta mais urgente e menos apta a ser respondida, por mais que se tente. O mundo racional, como trazido no livro, está em conflito com toda a intensidade daquilo que resiste à racionalidade, mas há também um grito em busca de entendimento, talvez um grito em vão, daí a melancolia tomar conta de tudo.

FERNANDO ANDRADE:  A melancolia dentro dos seus contos seria um olhar apenas sobre os objetos como uma pintura, ou mais uma ação das pessoas que se deformam perante os resultados do que o humano tem por realização pessoal ou não, num mundo que se compartimenta \ segmenta os discursos e não integra-os nas relações?

LÉO TAVARES: Penso que os objetos nos mostram, como espelhos, o que projetamos neles, e os objetos estéticos seriam espelhos que nos transfiguram, ou nos mostram uma aparência vista de ângulos incomuns. Vemos beleza ou feiura, pertencimento e não-pertencimento, e muitas coisas inomináveis entre. É uma questão de reconhecimento. Há coisas que recebemos com neutralidade e com outras nos relacionamos, queiramos ou não. Essas personagens lidam e se relacionam com a arte e com outros tipos de imagens íntimas, afetivas, e se surpreendem ou se assustam com o que veem: uma devolução muitas vezes ingrata. Coletivamente, penso que estamos experimentando uma relação conflituosa e melancólica com as imagens. Eu quis que O Congresso da Melancolia fosse um livro sobre o que vemos, mas também sobre o que projetamos nas coisas. Os séculos têm fisionomia, quando a gente passeia pela história da arte a gente consegue visualizar como eles teriam sido, para essas histórias hegemônicas, ao menos. Eu me senti intrigado com a cara do século 21. Penso que a melancolia nunca esteve tão presente, mas é preciso distinguir que a noção de melancolia também foi sendo transformada; das afecções saturninas do Renascimento para a doce melancolia da pintura dos séculos 18 e 19, quando a melancolia foi vista como certo deleite, relacionada a uma lassidão aprazível. Há um retorno para algo do saturnino agora, mas as qualidades da lentidão e do peso extremo desse “planeta da melancolia” deram lugar a outra coisa. São tempos rápidos, quebradiços e com muito acúmulo de informações, como nunca. O que essa fragmentação em excesso nos mostraria? A própria pergunta “o que é arte?” se tornou hoje mais difícil de responder do que jamais foi. Eu quis situar essas histórias nessa perspectiva, de que nunca foi tão difícil falarmos sobre arte e melancolia.

FERNANDO ANDRADE:  Há uma dialogia quase teatral, com as cenas, e os espaços, que repercutem na literatura, nas artes plásticas, criando pontes e intertextos nas formas de expressão cultural do homem. Esta relação entre formas que tanto podem ser visual, pictóricas ou gráficas, como se estabelece na linha dos contos onde se vê nitidamente, costuras internas?

LÉO TAVARES: A relação entre palavra e imagem é a minha investigação de vida, meu objeto de pesquisa, e daí as relações entre artes visuais e literatura serem tão interessantes para mim. As imagens verbais são um grande ponto de partida para os meus textos literários, a capacidade da descrição se aproximar de algo como a vivacidade, o animar pela imaginação. Mas também as estruturas espaciais me interessam muito, e as possibilidades de jogar com as nomenclaturas dos gêneros, por exemplo, de pintura, na história da arte, e os gêneros literários. E creio que uma questão para mim foi colocar em um mesmo grau de capacidade afetiva as imagens artísticas e as imagens naturais, os trabalhos de arte legitimados pela história ou pelo sistema das artes e as reproduções, as cópias, enfim, uma pintura ruim num conto (O Salto dos Bisões) gera tanto assombro quanto uma pintura expressionista reconhecida (Der Blaue Reiter), uma fotografia de família é tão desencadeadora de conflito (Anátema, o lobo) quanto uma fotografia imaginária (Uma delicada perturbação de pixels).

LÉO TAVARES:  Fiquei bem curioso na associação sua da cor azul com um certo temperamento triste. A cor é uma matiz que pode ser uma camada de tinta, mas aqui, me vi pensando naquele filme A liberdade é azul, onde o diretor extrapola um estado ou uma estética, para não ser literal apenas, mas sim, transfigurar toda uma possibilidade semântica de falar de desapego, liberdade. Me fale um pouco destas relações entre o azul, e a ambiguidade na arte.

LÉO TAVARES: Curioso você ter mencionado A Liberdade é Azul. Há um conto no meu primeiro livro, Os doentes em torno da caixa de Mesmer, que menciona esse filme e a personagem de Juliette Binoche. A utilização da cor como mais um elemento visual propulsor de impressões ou como representação de estados de espírito é um modo de situar atmosferas, significados gerais e também de acomodar metáforas. Às vezes é uma ferramenta narrativa para atingir a visualização mais vivaz, meta da écfrase, mas noutras vezes a cor tem um papel central numa história, como é o caso de contos como Der Blaue Reiter, em que ela significa algo como a manifestação da culpa e de uma dor indizível, mas esses sentimentos ali são transpostos para o real assumindo o azul exato das pinturas de Franz Marc, artista que é uma figura evocada no conto. Então há essa interpretação do mundo que nos é dada pelos artistas, e que de algum modo assumimos como verdade absoluta. Para a personagem envolvida com a “flamejante agonia” descrita por Franz Marc, o azul consome tudo, mas sua noção em relação ao azul lhe é dada pela arte. Escolhi falar de Franz Marc por muitas razões e o azul foi uma delas. É uma cor jovem, rara na natureza, relacionada ao longo da história a estados de espírito diversos. Neste conto ela evoca mesmo algo de plástico, de artificial, de inventado. Interessante que Franz Marc tenha pintado tantos animais com o azul, querendo tocar o panteísmo com uma cor que é considera a última das cores a ter sido percebida e que se manifesta tão pouco na natureza. Em Lobuno-azulado fantasma, conto que fala de um cavalo, o azul mais uma vez está relacionado com a culpa, mas também com a incompreensão e com a fantasmagoria. As outras cores mais destacadas no livro são o vermelho e o preto. O vermelho está presente nas cenas de violência, pelo sangue, mas é também o humano despido do metafórico, é simplesmente o sangue vibrando quente sob os olhos quando os fechamos (Câmara obscuríssima), e o preto é a escuridão, a noite, o mistério e a morte, mas é também o descanso de todas as falências, é onde o que não precisa ou se recusa a ser objeto da linguagem repousa. É uma interrupção.

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