Fernando Andrade entrevista a escritora Myriam Scotti

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FERNANDO ANDRADE – O diário é um relato que traz certa intimidade à história para o leitor. Embora esteja calcado na sucessão dos dias, e tenha um efeito cronológico, a tua escrita preserva uma certa tessitura de nuance, de pormenor, que o gênero às vezes não marca no texto. Fale um pouco disso.

MYRIAM SCOTTI –  Ao começar a escrever o romance, fiz diversas tentativas de narradores. O diário foi o formato que, justamente, por ser a escrita mais íntima de alguém, deu o tom que eu queria para a personagem. Essa nuance de que você fala talvez venha pelo fato de a personagem Syme fazer do diário seu confessionário. Por não se sentir compreendida, ela precisava, tal como as águas dos rios e dos mares, desembocar em algum lugar e o papel então se tornou seu grande aliado ou poderíamos dizer que foi sua salvação.

FERNANDO ANDRADE  – O filho que narra a primeira parte tem uma visão específica sobre a história da família. Quando lemos a segunda parte narrada pela mãe, temos até uma surpresa com as minúcias da família e da história. A mãe aprofunda o relato enquanto o filho fica numa narração de superfície. Por que esta diferença de ótica sobre o universo da família?

MYRIAM SCOTTI –  Porque é o que geralmente ocorre nas famílias e mais especificamente com as mulheres, que, ao longo da sua existência foi obrigada a aprender a silenciar, a se comportar para os outros como era esperado. Syme cresceu em uma família tradicional e religiosa. Ela sabia que não podia ser ou dizer exatamente o que pensava. Mesmo depois de adulta, com os filhos maiores, continuava a encenar um papel porque sabia que isso era o esperado para ela. Por isso Abner conheceu apenas uma face da mãe, talvez a mais endurecida e amarga e ao descobrir seus escritos, ele pôde compreender melhor a mãe que ele tanto amava.

FERNANDO ANDRADE- Queria falar um pouco de Syme. Ela é uma mulher que tenta escapar de uma relação de gênero sobre casamento e família, mas acaba exercendo o papel de esposa e mãe. E de certa forma acaba se afeiçoando à ele. Queria falar de certa individualidade feminina e não entrando tanto no aspecto apenas, feminista. Por que não o desenho de uma mulher que recusa papéis sociais que são marcados tanto por uma cultura patriarcal?

MYRIAM SCOTTI – Porque se tratava de alguém do século XIX e esperar que uma mulher desta época, nascida em uma família de judeus tradicionais rompesse totalmente com esses laços e costumes não me soou crível. Ademais, eu queria retratar alguém como tantas mulheres que acabam sucumbindo ao destino imposto. E isso é uma realidade atual. Quis criar uma personagem que, apesar de estar em outro tempo, conversa com as mulheres de hoje porque as causas, as dores, as dúvidas permanecem as mesmas. Ainda há muito o que se conquistar. Ainda há muitos espaços a serem ocupados e muitos comportamentos e tradições a serem rompidos.

FERNANDO ANDRADE  – Há uma certa inclinação do enredo à terra, até da sexualidade quanto a umidade do lugar, uma sexualidade que parece vir do clima tanto de Tanger quanto de Manaus. Até que ponto o aspecto sexual é uma marcação de referências para o comportamento das mulheres, ou não, elas traem esta questão da fisiologia do corpo ligada ao tempo, e o espaço. Fale disso.
MYRIAM SCOTTI – A sexualidade sempre foi tratada como um tabu para as mulheres. Aos homens é ensinado, desde muito cedo, que é normal sentir desejo, excitar-se, tocar-se, enquanto às mulheres, na grande maioria das famílias, é ensinado que, para ser considerada “direita” ou “para casar”, deve reprimir seus desejos, esconder-se até de si mesma, não pensar sobre, fechar-se. Ou seja, descobrir o próprio corpo ainda é para muitas de nós algo impossível porque isso está atrelado ao pecado que muitas religiões, bem como a própria sociedade patriarcal dominante continuam a impor, embora nossa natureza mostre o contrário; somos úmidas, caudalosas, seres desejantes, sexuais, como qualquer espécie. Mas, infelizmente, desde o nascimento, como já ensinou Simone De Beauvoir, tornam-nos mulheres e apertam nossos desejos e sonhos.

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