Romance Terra Úmida tece a cronologia de uma mulher presa a convenções de gêneros | por Fernando Andrade

terra úmida myriam scotti - Romance Terra Úmida tece a cronologia de uma mulher presa a convenções de gêneros | por Fernando Andrade
 
 
 
 

Fernando Andrade | crítico de literatura e jornalista

A memória é cíclica, não se compara ao prazo dos dias. Maleável como um mar revolto, com suas ondas sobre o tempo. Portanto, quando nos deparamos com um diário, cujo suar parece uma sucessão de dias acontecidos, sucessivamente, o tom das suas anotações, da sua escrita, parecem correr em outra lógica que não a da formalidade dos fatos narrados.
É como a gente pensar na questão dos gêneros, onde o homem tem a liberdade de fruir do gozo da liberdade de ser quem se quer. Enquanto, a mulher se enquadra em uma certa formação cultural clássica de boa mãe e boa esposa. O homem lhe destina o épico, a sucessão dos feitos de guerra, da virilidade. Enquanto a mulher lhe sussurra a intimidade do travesseiro, os segredos do diário.
Mas embora o estilo do diário seja frontal a uma visibilidade do autor, ele guarda certas questões íntimas de certa ambiguidade com relação a suas entrelinhas, que são muitas, se devidamente lidas no contexto certo.
Pensei muito nisso ao ler o novo livro da escritora Myriam Scott chamado Terra Úmida, pela editora Penalux. Uma família marroquina com todos os padrões de cultura e ética sobre esteriótipos de casamentos, e família. O pai doido para casar suas filhas. A mãe numa certa afetividade de espera, onde desejos são sombras dos maridos.
A cultura da família ainda existe pela soberania do homem postular o lugar de cada membro do clã. Mas a filha não quer este lugar, quer estudar e se formar para conquistar uma liberdade social e afetiva. Do choque entre vontades, a mulher parece aceitar um destino traçado, e trabalhar este destino através de uma sensibilidade que muito se parece com a escrita. Assim Syme começa a escrever o seu ainda em Marrocos quando casa com Judah, escolha do pai pelo seu esposo.
Myriam divide o livro em duas partes com focos temporais distintos. Uma no começo quando a família já está em Manaus. É um olhar filtrado pelo filho mais velho, Abner, que pontua o traçado da família. O leitor tem um ponto de vista que parece ser de um gênero masculino em busca de uma individualidade confiante.
Numa segunda parte temos a narração feita por Syme, e aqui toda a matiz da história se avoluma para uma outra percepção do leitor sobre a família. Numa escrita perceptiva e sensível, a mulher se auto expõe com toda intensidade sobre as pautas de gêneros num começo de século vinte. O diário se faz nas notas de um rodapé muito detalhista e íntimo, dando à narrativa uma filigrana de sentimentos e afetos que matizam a narradora com novo olhar.
O diário na sua acepção se revela múltiplo quanto às nuances e segredos que acompanhados no levantar dos dias de Manaus. Myriam usa de forma muito detalhista toda a coloração da paleta de um cromatura de cores pela qual uma personagem experimenta quando aturdida por um rotina que não lhe diz sobre as batidas do seu coração.

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