Roda-gigante, de Rique Ferrari, realiza a cruzada poética do artista em ultrapassar as pontes dos enigmas existenciais | por Alexandra Vieira de Almeida

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Alexandra Vieira de Almeida |  escritora e crítica literária

O posfácio do grande crítico Ronaldo Cagiano é um passeio rico e multifacetado pelo universo poético, em que ele diz: “Roda-gigante reafirma um autor em pleno domínio de sua arte”. Realmente, Rique desenvolve com maestria os temas universais, dando uma densidade particular a eles, adentrando no real pela via da literariedade. O prefácio, na mesma dimensão plena de sentidos sobre a obra, enaltece o trabalho já amadurecido, daqueles que exercem com consciência e burilamento seu ofício. Ele diz: “Todo criador – como um desses – busca criar uma nova forma de criar, ou não se sentiria bem em ser saudado com esse nome. É este o caso aqui”. O livro de Rique é dividido em três partes: “Linha de partida, Linha de chegada e Oróboros”. A última parte tem como subtítulo a junção dos títulos das seções anteriores, como uma síntese perfeita e bem elaborada sobre as duas partes anteriores. Ferrári traz inquietações reflexivas sobre o real em sua forma implícita mais expressiva. Rompe com a facilidade de uma linguagem mercadológica. Com a plumagem imagética que reúne, ao mesmo tempo, a carnalidade do mundo a questões existenciais e filosóficas, o poeta se vale do assombro e do espanto perante as coisas vivas e mortas, atingindo o âmago da dor e da essência dos seres em suas ambivalências. Utiliza a linguagem técnica da medicina no poema “O peso das palavras”, retrabalhado, pelo viés do constructo literário. No seu processo de intertextualidade, dialoga com o poema “Pneumanotórax”, de Manuel Bandeira, num trabalho formal e cuidadoso com as palavras em seu universo plurissignificativo, fazendo o jogo entre a gramaticalidade e a agramaticalidade, o cheio e o vazio, a palavra e o silêncio, o civilizatório e o selvagem. Nessa primeira parte, temos o mundo mágico infantil em sua perplexidade diante dos adultos, os “porquês” nos dicionários gastos do conhecido, desconstruindo relações estagnadas, dando um movimento, um motor à roda que gira incessantemente, sem parar. Encontramos em sua obra, a inventividade com seu jogo intralinguístico, transfigurando o plano da realidade por suas relações semióticas e causando uma inversão e estranhamento. Temos as imagens plenas de vazios inaugurais em versos férteis e expansivos em sua rotação giratória. Como podemos ver nos versos: “100 borboletas descascaram as roupas dos corpos a diluir-se em sóis”. Essas metáforas são mescladas à constatação realística do que está presente no mais cotidiano, próximo e familiar em seus componentes históricos e sociais: “morre aquela bela história de Ayrton Senna do Brasil/e o projeto da casa na árvore”. Assim, percebemos o despertar original de um olhar infantil, as crianças estão mais presentes nessa primeira seção. A criança que cria um habitat no coração existencial dos adultos e do eu-lírico. As coisas são imantadas por essa energia solar de suas belas metáforas que também vagueiam pelos vales da sombra, da escuridão e da morte. Há também o diálogo com o mito. Ele, que é universal. Temos a relação com os números, a exatidão deles, ressignificados por versos ambíguos e dilacerantes. Encontramos a origem e o fim, uma genealogia e uma escatologia, em que vemos a existência em pleno enfrentamento pelo Verbo. O tempo é medido pelas cordas musicais da poesia que ultrapassa a dimensão meramente cronológica para se fazer a imagem da eternidade da poiesis e seus sentidos potenciais. Une a concretude das avenidas do real ao reflorestamento dos símbolos numa polifonia de temas como o tempo, a infância, a morte e o amor. Aqui, se vale da ambivalência dos símbolos que não se fiam na unilateralidade de um pó entranhando pelo verbo ideal, há uma polissemia de significados em cada palavra como o “verde, num de seus poemas, que pode ser esperança ou veneno. O bem e o mal são imbricados na metáfora do phármakon (remédio e veneno). A delicadeza das palavras indizíveis e silenciosas navega no marulho dos temas mais cortantes da conhecida realidade, um punhal a dilacerar o véu suave das coisas. Cria os contrastes mais díspares também, que pela força do poético, ganham sua dimensão de semelhança, como uma espiral barroca que tudo acolhe em sua sinuosidade: “o silvo da ambulância é canção de ninar”. Na segunda parte, encontramos uma crítica ácida às festas natalinas, com sua imagem ambígua de sacralidade e consumismo. Vemos o flerte criativo com o cinema, transversalizando as artes, como em “O grande filme”. Na primeira parte, temos mais a metáfora do nascimento (criança) e na segunda parte as faces da maturidade e da morte. Não poderia faltar um diálogo atualíssimo com reflexões sobre a quarentena em “a chuva”, em que temos uma exposição primorosa que une a crítica com o entreolhar das imagens do mundo que circulam em sua visão devastadora. Temos o extermínio e a morte de animais. As referências às fábulas e aos contos de fada. O encantamento é quebrado pela densa realidade, originalmente recriada pela poesia mais fecunda. Encontramos também o mundo das invenções dos adultos em vários povos e civilizações. Unindo então o universal ao particular, Ferrári revela o processo civilizatório da humanidade e, ao mesmo tempo, sua degradação com a figuração da morte e do caos em meio à vida e à natureza. Aqui, nessa parte, complexifica-se a relação natureza X cultura. A experiência acaba se mostrando como matéria da poesia através de suas sensações e reflexões, reunindo o sensório e o intelectivo, em seus jogos sinestésicos e mirabolantes. Nessa seção, percebemos uma genealogia das eras através das suas invenções, criações e assombramentos diante de fatos corriqueiros. O adulto se extasia diante do milagre e se consome perante a violência do mundo com suas explorações com relação aos outros para a submissão e opressão. O caos X o amor. Na última parte do livro, há um só poema longo, como são os poemas dessa obra maravilhosa e especial. “Oroboros” é a serpente que morde a própria cauda num movimento incessante, conduzindo ao tempo da eternidade, que na verdade, é a dimensão do agora, do instante já, um flash, uma fração que não pode ser medida com exatidão, como na dimensão clariciana. A roda-gigante que gira é um tempo medido pelas cores maizadas do olhar não decifrável aos olhos superficiais. Esse olhar da roda-gigante é o mistério da vida que se abre em interrogação infinita, apontando para novos ciclos de existência. Em torno do ordinário, Rique Ferrári recria o mundo de forma extraordinária, a partir do poético, em seu processo de desnudamento e velamento do real, origem e fim. Fim e origem. Algo que não termina, criando um novo início, um novo ciclo. O primevo se move pelo artefato literário numa profusão de atos, de criações que não cessam os olhos da insônia, o despertar das horas eternas e não calculáveis pelo relógio e por Cronos. Temos uma partida, uma largada, o primeiro, mas uma história sem fim, que se reinicia em novas criações. Portanto, em Rique Ferrári, com sua Roda-gigante, ele realiza a cruzada poética do artista em ultrapassar as pontes dos enigmas existenciais.

 
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Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.

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