Entrevista com Katia Marchese

katia marchese mulheres de Hopper - Entrevista com Katia Marchese
 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE – A pintura tem suas cores e matizes, a escrita; os espaços em branco para preencher. Como foi transpor o imaginário do pintor Hopper para o poema, filtrando suas temáticas e obsessões sobre a solidão, os centros urbanos, com sua luz. Como foi este processo para escrita?

KATIA MARCHESE – O livro “Mulheres de Hopper” foi concebido a partir do meu processo de estudo e interesse das obras do pintor Edward Hopper. Selecionei 26 quadros que funcionaram para mim como janelas, no qual debrucei meu olhar. Recolhi e escrevi o que guardei dos jogos de luz e sombra, do que estava dentro e fora, dos pensamentos assistidos, dos rituais e das vertigens observadas. A partir das escolhas dessas imagens foram criados os poemas e as ilustrações correspondentes, o conteúdo da obra está fundamentado e distribuído em dois eixos temáticos que se mesclam ao longo do livro: poemas de desconstrução e recolhimentos do aprendizado e poemas de construção e afirmação da liberdade.

Aquelas mulheres vivenciam o cotidiano da vida em suas casas, quartos, locais de trabalho, transportes, cafés, hotéis, pensões. Estão nas suas mais diversas expressões de interiorização. Foi nesse processo íntimo, alquímico e de desconstrução do imaginário feminino que escrevi os poemas deste livro, poder revelar vivências, encontrar dentro dessas mulheres seus centros de força e proteção, a capacidade de salvar a si próprias, de gozar a liberdade e o prazer, mas também encontrar a dor que as destrói e ameaça suas existências, sem romantizar nenhuma dessas realidades.

Um outro processo para a escrita do livro que intensificou a experiência foi a pandemia que ainda vivemos passados mais de 01 ano (diga-se de passagem nunca imaginada, quando da premiação do projeto do livro pelo PROAC 2019, ainda podíamos ainda viver fora). Conceber o livro confinada, acabou por me tornar uma Mulher de Hopper ensimesmada dentro da minha escrita, me colocou do lado de dentro dos quadros literalmente, escrevi e lancei o livro em confinamento. A ficção da obra sendo vivida na realidade.

FERNANDO ANDRADE – Você trabalha muito bem os cortes do poema, eles não são tão narrativos à ponto de criar um certo enredo. São epifanias de uma mulher absorvida pela sua solidão perante as relações afetivas. Como foi fazer estas costuras nos versos?

KATIA MARCHESE – Penso que a vida é matéria de poesia, é importante se manter em “estado de”, perseguir o olhar detalhado do repouso sobre os dias, as imagens. E foi isso que exercitei ao conceber as histórias que essas mulheres contam, elas são diversas em seus embates sociais ou amorosos. Nem sempre um poema dá sequência ao dizer do outro, para costurar todos esses poemas criei uma espécie de percurso geográfico, um caminho para que os poemas possam acontecer diante dos olhos dos leitores.

Os poemas foram dispostos em sessões: em Trajetos os poemas compõem a transitoriedade dos corpos destas mulheres em locais provisórios e como são afetadas pelos espaços que as compõe, em Janelas elas observam ou são observadas em seus processos de interiorização ou de exposição, em Quartos elas realizam sua privacidade, experienciam suas clausuras, prazeres, dores e intimidades, em Casas elas habitam seus domínios, refletem sobre a pose de seus corpos/casa, estabelecem territórios e defesas, afirmam ou negam os processos onde a solidão feminina é o fio condutor para o aprendizado da solitude.

Para além dos quadros de Hopper que inspiram narrativas diretas e intensas, as obras literárias de Emily Dickinson e de Orides Fontela foram fundamentais nos meus estudos, são poetas que também viveram dentro de suas casas, intimas da poesia muito mais do que das relações sociais com a vida, seja por opção estética ou por condição impostas. Sua escritas ensinam o silêncio e a essencialidade, talvez isto explique minha propensão aos cortes, as pausas para outras cenas e a concisão dos poemas.

FERNANDO ANDRADE – Achei incrível a sintonia da sua escrita com as pinturas da Isabela Sancho. Como foi o trabalho das duas? Quem enviava primeiro? E fale um pouco desta complementariedade entre pintura e escrita?

O processo com a Isabela para a criação das ilustrações, foi realizado de duas formas: Numa, os desenhos foram totalmente baseados nos quadros de Hopper que selecionei e enviei a ela, eu pedia que ela preservasse apenas algumas marcas que julgava importante das cenas, mas o resto ficava por conta da poética dos traços da Isabela em contato com as imagens de Hopper e ela fazia sua recriação. Noutras, as imagens de Hopper foram acompanhadas junto com os poemas já criados, e sempre que os desenhos retornavam a sintonia com os poemas era impecável, cada vez que recebia uma ilustração tudo estava no lugar certo, os gestos interpretados com precisão, os jogos de lua e sombra, os traços que recriam as cenas somente com o estritamente necessário. Enfim suas ilustrações são outros poemas em diálogos com os meus, aliás acredito que o desenho é uma outra forma de fazer poesia.

FERNANDO ANDRADE – O corpo no espaço de um lar, de um lugar fechado, parece ser o tema não sei do pintor, mas dos seus versos. A linguagem tenta abarcar este peso do viver sobre uma cama, os objetos parecem ser tão fundamentais para o poema quanto o corpo físico, não? Fale um pouco.

KATIA MARCHESE – Hopper é considerado o pintor da solidão urbana, mas mais do que pintar as cidades vazias e seus raros personagens, Hopper escolheu as mulheres e os seus corpos para dizer da intimidade e dos reflexos da solidão urbana. Os poemas são também uma resposta a essas imagens criadas por ele e por sua luz que evidencia os corpos e os objetos em torno dele. Esse jogo de luz e sombra atravessa essas mulheres entretidas consigo mesmas, enfrentando os dilemas de suas vidas. Elas não são necessariamente tristes, não são diferentes ou especiais, são comuns e por isso mesmo intensas e extraordinárias para a poesia. As personagens retratadas nas obras parecem estar longe de casa ou as vezes em suas próprias casas, elas leem um livro ou cartas, estão nuas na intimidade de seus quartos, bebem em um bar, olham pela janela do transporte público ou estão em alguma sala de espera. Seus corpos, gestos e rostos são vulneráveis e introspectivos. Podem ter sido abandonadas ou ter abandonado alguém, estão em busca de trabalho, sexo ou companhia, à deriva em lugares fixos ou provisórios.
São mulheres que dentro de seus espaços íntimos resistem e enfrentam a cultura machista, misógina, disfarçada de “mito do amor romântico”, uma crença que está impregnada em nossos corpos, falas e mentes.

FERNANDO ANDRADE – Há uma certa propensão à janelas onde o personagem se enquadra, como se ele estivesse sendo captado\capturado por uma lente do entorno. Janelas se repetem nas figuras. Esta relação espacial entre dentro e fora me fale se existe também dentro de sua linguagem poética?

KATIA MARCHESE – Eu tenho uma relação antiga com as janelas, meu primeiro blog na internet se chamava Janelaria, gosto muito da ideia da janela como um olho mental exercendo suas escolhas, recortando ou ampliando as cenas da realidade e definindo seu campo de intervenção. Podemos ver da janela ou podemos enxergar janelas, são alternativas que penso escolhemos todos os dias. Ela é um instrumento de observação poética fantástico. Nos poemas usei esses recursos, em “Por dias” se vê de dentro para fora da janela a possibilidade de romper o espaço íntimo esquadrinhado, já em “Transparência” se assiste de fora para dentro da janela, do olhar público para o íntimo dos corpos e dos objetos da casa.
Encontrei em Gaston Bachelard no seu livro A poética do Espaço uma boa definição da janela como instrumento: “Pela janela do poeta a casa entabula um comércio de imensidão com o mundo”. O poeta da sua janela pode desenhar o visível e o invisível, pode ver a rua, o mar, o vizinho, a cidade, mas também pode não ver coisa alguma, apenas perder-se em seus pensamentos através daquele espaço que lhe invade. A janela é uma bela metáfora para a abertura da imaginação, te permite realizar um recorte do olhar, criar e recriar a cada novo olhar. Diante de cada quadro de Hopper criei o meu recorte, a minha janela, e de lá escrevi e rescrevi os poemas.

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