Fernando Andrade entrevista o escritor Gabriel Schincariol Cavalcante

Gabriel Schincariol Cavalcante - Fernando Andrade entrevista o escritor Gabriel Schincariol Cavalcante

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FERNANDO ANDRADE – O título conversa de forma oblíqua com os contos. É quase um diálogo com a artesania dos temas e com o estilo da sua escrita. Como foi tecer este fio urdido de conceito e forma?

GABRIEL SCHINCARIOL CAVALCANTE – O livro todo é enlaçado por um lugar-comum, que é a infância, ou, mais precisamente, uma aproximação infantil em relação ao mundo. Essa aproximação infantil envolve uma surpresa, uma curiosidade em relação a tudo, um profundo desejo de conhecer e ser enquanto sujeito inacabado – a criança adota sua inacababilidade como regra, pois está fisicamente crescendo, expandindo-se, vendo o corpo se alterar e, nesse movimento de crescimento próprio, passa a reconhecer e a dar nome ao mundo externo. Enquanto eu escrevia os contos do livro, eu ainda não havia pensado em um título. Talvez já tivesse escrito uns 10 contos quando li Lencinhosdo Sérgio Sant’Anna, e assim que me deparei com o trecho em que o protagonista e narrador está na beira da praia e flagra no oceano o movimento das baleias, ficando um pouco embasbacado (é um protagonista mais velho, um homem de meia-idade); notei ali a relação que eu buscava: uma aproximação infantil que independe da idade. Ele diz: se existem baleias, tudo é possível. E assim o livro foi nomeado como Um mundo em que existem baleiasÉ nesse mundo, no universo do livro, em que existem baleias e, portanto, tudo é possível. O desafio autoimposto, como todo desafio literário, foi não me restringir a histórias da infância – eu sou, a bem da verdade, um mau contador de histórias -, mas fazer da forma dessas histórias da infância uma imersão na curiosidade, no deslumbramento, na descoberta constante. João Gilberto Noll, um dos meus contistas favoritos e talvez a maior influência literária brasileira no meu modo de escrever, disse em certa entrevista que era um escritor da linguagemque ele ia escrevendo e deixava ver para onde é que a linguagem o levariaMinha intenção, ao escrever, é sempre encontrar o ritmo certo e, uma vez encontrado o ritmo, deixar que esse ritmo encaminhe a história, dando vida às personagens, aos eventos, às dores e às alegrias. Acredito que os contos dividam esse núcleo comum – a linguagem como guia -, e se diferenciem a partir dos caminhos que a linguagem propõe dentro de cada história.

 

FERNANDO ANDRADE – Você trabalha traços da individualidade do corpo e do afeto. São traços que nos tornam eus tão singulares. Mas ao mesmo tempo temos o núcleo familiar que apaga estes traços, quando eles são um pouco distintos do comum. Fale um pouco disso.

GABRIEL SCHINCARIOL CAVALCANTE – Um fenômeno da infância é descobrir o próprio corpo, a própria sexualidade, os próprios interesses. Não se tratam, é evidente, de histórias infantis no sentido clássico – histórias para crianças -, mas de histórias sobre a infância – que não se restringem, necessariamente, a personagens infantis, já que a infância não acaba quando envelhecemos. Na contramão desse processo de descoberta, estão os elementos do mundo exterior que atuam como limitadores – a família é o primeiro deles. Esse limitador pode ser mais amplo ou mais ameno. Quando uma criança, nascida no seio de uma família conservadora, passa a se descobrir enquanto indivíduo, passa a exprimir desejo, essas expressões podem ser caladas, reprimidas, apontadas como desvio de conduta, e assim aquele indivíduo em formação deixa de ser quem ele é, para agir como ele deveria serTemos o exemplo do conto em que o menino encontra um gatinho de rua e, comovido, leva o bicho para casa. Assim que os pais chegam, imediatamente determinam que ele tire o gato dali. Os pais, que são ali personagens extremados, ignoram a descoberta do afeto do filho, tratam esse momento singular como criancice, bobagem – uma reação que não surpreende o menino, já que ele, desde o princípio, é dado a longas caminhadas para calar os seus sentimentos, uma vez que com eles não sabe lidar, ou, ainda, aprendeu que não deve lidar. O fato determinante para eu decidir pela temática do livro e pela sua criação foi a citação que bell hooks faz de Terry Eagleton, em Ensinando a transgredir, quando ele diz que As crianças são os melhores teóricos, pois não receberam a educação que nos leva a aceitar nossas práticas sociais rotineiras como “naturais” e, por isso, insistem em fazer as perguntas mais constrangedoramente gerais e universais. A relação entre singularidade individual e o apagamento dessa singularidade me parece indispensável para fazer esse tipo de ficção. A família, instituição mais próxima nas nossas vidas, também aparece com menos rigidez, como o pai que viaja com o filho de fusca ou o que planta um pé de manga para a filha, ou a mãe que tenta proteger o filho que se descobre, mas essa presença limitadora acaba sendo inevitável.

 

FERNANDO ANDRADE – A sexualidade é algo tão natural e espontâneo na sua escrita e nas suas narrativas. É algo que vem antes da norma, da classificação-rótulo. Por isso acho que seu texto vem por camadas de sentidos e feelings, pois as descobertas são muito particulares dos seus personagens. Como foi esmiuçar isso tudo nos contos?

GABRIEL SCHINCARIOL CAVALCANTE – Nisso eu retomo o que disse antes: a sexualidade é um dos muitos momentos da autodescoberta, e, talvez, o que mais gera repercussões para o resto da vida. Vai-se descobrindo o próprio corpo, a existência do prazer, a existência da atração, a existência da vontade, tudo absolutamente natural de todo indivíduo, que, no entanto, pode surgir como tabu. A sexualidade não surge dentro de padrões sociais, ela é encaixada nesses padrões posteriormente, e esse movimento de encaixe pode deixar marcas definitivas e graves na formação do indivíduo. Eu me propus escrever sobre tudo que envolvesse sexualidade de maneira mais natural e direta possível, afastando-me do tratamento cerimonioso e cristão. Isso envolveu, também, um exercício em relação ao gênero dentro da própria linguagem, e por isso Caravelas não possui nenhum marcador de gênero em relação às duas personagens principais, que estão se descobrindo mutuamente, descobrindo a si através do corpo do outro, em comunhão. E essa descoberta é rompida, abortada pela introdução de um terceiro adulto, já conformado nos padrões, já resignado pela norma.
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FERNANDO ANDRADE –  Aquilo que está longe, forma de espectro habitual é que chama mais atenção. O mar é misto de fascínio, pois tem cuidado  e perigo. Estas simbologias parecem muito próximas de um crescer masculino, não?

GABRIEL SCHINCARIOL CAVALCANTE – Possivelmente. A masculinidade como forma, como personalidade envolve essa busca pelo distante, pela travessia, pela jornada do herói. Envolve a provação diante do perigo, o enfrentamento da dor e dos medos. Entrar no oceano, que é vasto e profundo, cujo conteúdo se vislumbra apenas de maneira muito marginal, é um movimento de jornada. As ondas, que não controlamos e nos acertam em cheio. Os peixes, que nos assustam e fascinam. As baleias, enormes, dotadas de vida, de dor, de prazer, de intenções. É um mergulho no desconhecido. Porém, acredito que em alguma medida esses sentimentos são compartilhados em todo crescer, uma vez que, pequenos, desejamos ser grandes, para que possamos fazer tudo o que a gente grande faz – é uma busca pelo que vem depois, pelo que não está aqui, agora. Tudo é novidade, e temos a ilusão de que, mais tarde, dominaremos essa novidade, sabermos tudo o que há para saber, transformaremos o fascínio em instrumento, quando, na verdade, o fascínio permanece – o mar ainda é perigoso e cheio de vida -, mas nós, em algum momento, subjugamos essa vontade forte de ver o mundo inteiro em prol de uma mundo restrito, o mundo da nossa rotina e das nossas obrigações. Nesse ponto, o crescer masculino e o crescer feminino, dentro dos padrões, confundem-se um pouco, apesar do conteúdo ser distinto: o homem cresce para prover, ser forte, ser rígido; a mulher, para servir, para cuidar, ser amorosa e gentil. 

 

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