Entrevista com o escritor André Balbo

andré balbo Agora posso acreditar em unicórnio 683x1024 - Entrevista com o escritor André Balbo

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FERNANDO ANDRADE: Qual é relação que referências podem ter na ficção? Buscamos em nós os últimos fios das leituras da tessitura que nos faz parte? Deixa solto, como diz o manobrista?

ANDRÉ BALBO: Essa pergunta me dá brecha para dar uma brisada. Bora lá. Não acredito em literatura como manipulação simplista dos dados oferecidos pela minha experiência imediata. Entendo que escrita literária tem a ver com assimilação – por meio de diálogo, digressão, antropofagia, emulação, paródia, plágio – e ela se estabelece a partir de um compromisso quase erótico com o já-escrito, seja para reiterá-lo, seja para contradizê-lo, seja para revolucioná-lo. Silviano Santiago escreveu que o escritor latino-americano sempre brinca com os signos de um outro escritor, e que as palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro. Quando olho para a produção contística brasileira mais recente – talvez dos anos 2010 para cá – sinto que no mais estamos diante de um combinado de experiências sensuais com os próprios signos, resultando em livros autorreferentes que tropicam no tom de diário ou terapia, ou ainda de denúncia política explícita, pasteurizada – e na moral acho que esta é uma das coisas menos latino-americanas que existe na literatura e, em boa medida, uma das mais arrogantes – ou ingênuas, não sei onde uma acaba e a outra começa.
Usar a literatura para dizer as mesmas coisas (e do mesmo jeito) que digo no bar, e como se ninguém nunca as tivesse dito – quando provavelmente até o Pedro Bial já as disse –, é um caminho que não me atrai artisticamente; me interessam mais os caminhos dialógicos de escritores como a Veronica Stigger de Sombrio, Ermo, Turvo, que assimila e brinca com Borges, e o Lucas Litrento de Txow, que assimila e brinca com João Antônio, para falar em dois contistas contemporâneos de gerações diferentes.
Por aqui também busco brincar com as palavras dos outros. O título do meu livro é uma frase roubada d’A tempestade, de Shakespeare, na tradução de Beatriz Viégas-Faria – peça, diga-se, que já foi usada e reusada, reformada e expandida, hoje até em tradução-exu de André Capilé e Guilherme Gontijo Flores, que assimilaram Césaire e Shakespeare. Daí que chapar meu livro com essa referência de cara foi como dizer: “estes contos têm como ponto de partida a literatura”. As referências dos textos – não importa se a um conto de Cortázar, a um romance de Virginia Woolf ou a uma canção de Lady Gaga – talvez não tenham necessariamente um papel, no sentido utilitário, porque acima de tudo são o rastro que fica da violenta tentativa de surpreender os textos originais em suas limitações, fraquezas, lacunas, desarticulando-os e rearticulando-os de acordo com as intenções não da minha experiência biográfica ou das minhas opiniões de boteco, mas da minha reflexão sobre a literatura (e de suas possibilidades, claro), isto é, minha reflexão enquanto leitor, que é a única coisa que me sinto confortável de oferecer a outros leitores. Não me levo a sério o suficiente para achar que qualquer coisa que eu escreva vai revolucionar a unha mindinha de qualquer pessoa.

FERNANDO ANDRADE:  Teu texto de ficção tem uma relação com o prazer de ler nas entrelinhas, por que ler é saber pescar trutas, mesmo quando elas estão abaixo da superfície. Fale um pouco disso.

ANDRÉ BALBO:  Se a gente abraçar a famosa e principal tese sobre o conto de Piglia, concordamos que um conto sempre conta duas histórias. Sobre a dinâmica entre as duas histórias, Piglia dirá que no conto clássico (Poe, Borges) a história 1 é narrada em primeiro plano enquanto a história 2 é construída em segredo; e no conto moderno (Tchekhov, Mansfield) as duas histórias são relatadas como se fossem uma só. Estou apaixonado por escritores – em particular contistas argentinas contemporâneas – que, assim entendo, transitam entre essas duas tradições (ou fazem um mix delas) num mesmo livro e às vezes num mesmo conto, ora mais elípticos e surpreendentes, ora mais alusivos e subentendidos, como faz Mariana Enriquez no conto “O menino sujo” – um conto altamente político, vejam só, e absolutamente literário. Clássico ou moderno, o conto é o gênero das entrelinhas (como dizer muito com muito pouco?), por assim falar; se meus contos denotam esse aspecto, é menos por “criatividade” minha – 98% do meu livro são ideias roubadas – e mais por deferência à estrutura do conto em que acredito. A propósito, como fonte de inspiração permanente para lidar com as entrelinhas, gosto de citar o conto “A mosca”, da Katherine Mansfield, na tradução de Denise Bottmann. É um conto construído todo nas entrelinhas, nos simbolismos – nos nomes dos personagens, nas metáforas, nas imagens, nas escolhas vocabulares. Puta leitura.

Bons contos têm boas histórias superficiais, dá para dizer, mas acho que para o leitor mais curioso não tem tesão maior do que escarafunchar cada alusão, imagem, metáfora, diálogo, referência, como se pudéssemos rever em câmera lenta um número de ilusionismo buscando o que deixamos passar – e acabar enganados do mesmo jeito. Penso que o conto é o gênero da palavra exata, da engrenagem infalível, e as entrelinhas são como vestígios dessa fabricação silenciosa; o resto é xaveco de fim de churrasco e não interessa a quem trabalha no terreno da latência. Porque a não ser que tenhamos como proposta estética subverter o próprio gênero, e aí esse é outro papo, escrever contos, disso fui convencido pelos livros, não tem a ver com espelhar o mundo ou dizer a verdade; tem a ver com enganar o leitor, embaralhar o referencial, distorcer o mundo e mentir até o ponto em que ele mesmo, o leitor, se assim se dispuser, vai descobrir que o tempo do conto é vertical e mais complexo que o do celular que desperta para a hora de tomar sol, e que há coisas que a literatura não precisa dizer explicitamente para que ali estejam. E pensando bem: mesmos escritores que subvertem o gênero, como o Marcelino Freire de Contos negreiros, por exemplo, também neles vejo uma busca pelas entrelinhas ditas clássicas e/ou modernas. Ou até as duas: no conto “Caderno de turismo” – e o Marcelino que não me flagre groselhando pra cima dele –, além do final surpreendente, toda a potência está abaixo da superfície do diálogo (sugerido) entre dois personagens (um deles apenas suposto), marcado por frases polissêmicas e alusivas como “nosso destino é um só”, e a leitura das entrelinhas qualifica o conflito superficial, que passa a ser literário-político, narrativo-histórico. Lemos esse conto pela primeira vez e pensamos “pera, ah, nossa, bacana”; o relemos verticalmente, parágrafo a parágrafo, acessando a história oculta, e concluímos “puta merda, acho que agora entendi o Raízes do Brasil”. É buscando o “puta merda” que eu escrevo, mas se rolar só o “bacana” também tá valendo.

 

FERNANDO ANDRADE: O surreal pode vir dentro de um universo concreto como um bar\cafeteria, ali basta que as palavras puxem um torvelinho da imaginação para a coisa se potencializar em fantasia. Como é esta passagem do real para certa imaginação surreal?

ANDRÉ BALBO: Clarice Lispector está longe de ser o primeiro nome quando pensamos no surreal na tradição contística latino-americana, mas é para mim o primeiro quando me proponho a pensar o surreal em termos de desfamiliarização do cotidiano. Gosto de pensar no fantástico – incluam-se aqui o surreal, o insólito, o fantasmagórico, o maravilhoso etc. – como decorrente do estranhamento de um olhar inaugural para o mundo, algo como adquirir um olhar estrangeiro, ver as coisas como se fosse a primeira vez (algo que aprendi com Alice). Por isso eu pergunto: será que ainda vale pensar apenas em termos da passagem do real para o surreal? E o surreal já familiarizado, como o superpop unicórnio? Será que ainda espanta? E se um centro de ciências naturais da Itália divulgasse imagens de um cervídeo que nasceu com um único chifre, no centro da cabeça, e foi apelidado Unicórnio, reforçando a hipótese de cientistas de que o animal realmente existiu e só depois se tornou um ícone das lendas? Essa é uma história real e presente no meu livro – ou eu inventei isso tudo? Que mundos se abrem quando o fantasioso é mais convencional do que a própria realidade? E que mundo é esse em que passamos a reagir de forma descontraída diante do absurdo? Impossível aqui não pensar na famosa frase de Günther Anders, a propósito de Kafka: “o espantoso é que o espantoso não espanta ninguém”. Talvez o unicórnio não seja nada surreal, e muito mais espantosos sejam outros bichos que aparecem no livro, como uma certa vespa, um certo percevejo, uma certa mosca, um certo rato – pequenos animais do dia a dia cuja surrealidade se revela muito mais mágica do que um chifre se soubermos usar as lentas apropriadas.

FERNANDO ANDRADE: A semiologia da imagem pelo seu sentido figurado me lembrou o caminho da palavra\tema Unicórnio, no seu livro, onde cada conto trabalha e potencializa seus caminhos semânticos da ideia do unicórnio. É uma velocidade onde a figura se traveste em outros sentidos, de acordo com o estilo do conto. Fale um pouco disso.

ANDRÉ BALBO: Não sei se dei conta da pergunta, mas bora lá. É interessante porque tradicionalmente o unicórnio nos aparece apenas como figuração. No entanto, em alguns textos do meu livro ele aparece como criatura real, ao menos no sentido de animal admitido pelas ciências naturais. Seja como for, é de partida um “objeto” polissêmico (em sentido amplo), multirreferencial, famoso na iconografia, nas artes literárias e visuais, no Blade Runner, no Meu Malvado Favorito, no universo lgbtqia+, nos cadernos infantis escolares, e só por isso daria para dizer que pode ser literariamente interessante, já que se estende em diferentes dimensões e recusa planos uniformes e binários. Por isso, o leitor não deve só esperar arco-íris ou tapeçaria medieval; em cada um dos textos do livro eu pretendi trabalhar um ou mais desses “caminhos semânticos”, e sim, cada estilo de conto pede mais alguns caminhos e recusa outros – há desde uma visão biológica-evolutiva do unicórnio, passando por uma representação cultural falocêntrica, até uma acepção lisérgica (literalmente: no último conto há um tipo de LSD cuja cartela é a imagem de um unicórnio). Cada conto tem uma ou mais referências ao unicórnio, diretas ou indiretas, principalmente por um dever de unidade e amarramento entre as histórias – quis escrever um livro de contos, não com contos –, e também como forma de brincar com o leitor, numa espécie de “onde está Wally?”. Porque no final das contas eu não quero ensinar nada, tampouco dizer coisas sobre o mundo com as quais sei que a maioria dos leitores da bolha literária deve concordar; me interessa o permanente estranhamento simbolizado por esse animal fantástico e real, me interessa compartilhar a náusea da minha experiência ficcional em prol de novas brisas que essa criatura de chifre e seus significados possam provocar. Dar nome a essas brisas e interpretações, decidir se há nelas visões sobre o mundo e a sociedade ou se tudo é alienação imatura, isso é com os leitores.

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