Vestido de tafetá | W. A. da Silva

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Wellington Amancio da Silva é professor, tradutor e mestre em Ecologia Humana. Publicou livros de ficção, de ensaios e artigos acadêmicos em lugares interessantes. Destacam-se “Ontologia e Linguagem” (2014), “Figuras da indiferença” (2019), “Gumbrecht leitor de Martin Heidegger” (2020), “o reneval” (2018), Primeiros poema soturnos” (2009), “Apoteose de Demerval Carmo-Santo” (2019), “Os outros, sertão de argila escura (2021). Faz parte do editorial da Utsanga (italia) eda Revista de História da UEG, das Edições Parresia (www.edicoesparresia.com.br)
 
 
 
 
 
 
Quem escreve ficção no fundo diz: parte do que vi, aqui está. Lembro-me como se ainda agora ocorresse, mas não sei definir ao certo se me pertence e o que hei de fazer com isto.

O dia em que vi Liúna. Achado de pérola num campo. Seu movimento.
Anseio nos gestos das mãos. Reaver a leveza; nela recostar-se, vê-la. Vestir- se dela. Senti-la num senso de novidade. Eis o dia igual a quem retorna, nítido, delineado. Apenas vestir-se do que sereno vier ao olhar. Usar por usar, sem palavras mais profundas. Ela — vestido de tafetá vermelho vinho, pele aveludada em roupa fina; passos sem igual nesta terra. E chegou-se como se alegre, e sentou-se ali, numa cadeira de recosto vermelho, e respirou com muito gosto e olhou-nos. Renovo — sabor e perfume de festa. A mesa e seu bordado em renda guipir; flores vermelhas ao centro, num vaso negro; mãos apalmadas sobre a mesa — eu as vi apalmadas sobre a mesa, e também contentes, as mãos dela. As flores, o pano bordado, os talheres e os pratos para ela. Vi-a de soslaio. A luz malva e esbranquiçado sobre o verde; o aramado negro do caderno branco, um texto em letras cursivas, letras derreadas, em grafite grosso e maquinal, um texto em forma de verso, seu espírito que não desvelo. O verde fértil, a esperança circundante, a copa densa das árvores cacheadas de sombras de brandura. No quintal, a mesa alegre à presença dela. Auspícios em nosso meio, e nós entre nós. Uma criança de colo dorme em lábios rosados; uma mão idosa, feminina, afaga a criança; afagos precisam de uma criança. E dorme, com se a paz fosse instaurada em todo lugar. O sonho tem o gosto de mil notas. Invejo as crianças. Gravetos que estalam; o ranger terno de um tronco; o silvo entre as folhagens. Auspícios em nosso meio. Grama verdinha e o orvalho que perdura, e ela sentada observa, não sei para onde para quê; o caderno fechado. Se o dia não fosse somente dela. Um burburinho tenaz não sabe o que quer. Ninguém faz questão, ninguém jamais ouviu um burburinho. O amor é uma boa morte. E os anjos têm asas frágeis, mas creem que podem voar e voam. Liúna, a moça do vestido vermelho vinho, sabe mais que aquelas árvores antigas o que deseja um moço feliz. Como na fábula, esse moço vê a musa e por instante não quer morrer, nunca mais. Liúna é uma ideia para mim, tenho que reconhecer. Insondável mulher. Vejo-a belíssima, quase ao meu lado, e percebo que não sei nada a seu respeito. Nenhum homem neste mundo conhece uma mulher, mas ele gosta de imagina que conhece. Essa imaginação é uma mentira, e tão necessária para que se mantenha sendo o homem que é. Observo o alto e respiro fundo; acho que o dia argênteo não permitiria certos voos. O que poderia acontecer? Uma chuva do tamanho do mundo, do tamanho do mundo.

Uma chuva que aponta lá longe. Um sopro torna-se vento e o vento é premente no rosto dela, um silvo comprido, é Agosto. Arborosas pendem, de um lado para o outro pendem, e nunca vi uma dança tão feliz. Há quem não leve a sério o céu? Cansa-me pensar em voltar para casa, e eu mantenho-me sentado ao lado dela, quase tocando a orla mágica daquele vestido. E as suas pernas.
Uma chuva do tamanho do mundo. A manhã nubla-se de repente e profundamente. As serras distantes cor de chumbo nos ensinam que a manhã é senhora de si, como Liúna, e tudo se reveste de um mando opaco. As serras se perdem num manto de chuva. Liúna se ergue e corre até a varanda, a trinta metros. Permaneço sentado, olhando-a. A chuva cai e eu me deixo encharcar.
Emudecido, observo Liúna que parece sorrir vendo-me sentado à chuva.
Alçada esta vontade que o silêncio veste de abrasadura. Permaneço sentado, mas não em paz. Ouço vindo de longe as gargalhadas mais musicais do mundo e meu coração dispara; Liúna atravessa a chuva segurando a orla do vestido, ela corre. Vem até mim e me olha. Desce ao fundo da mesa, e fixa-se a me encarar por entre o forro bordado — seus olhos me recontam do peito para dentro e profundo. Eu a contemplo e junto-me a ela num beijo, como se fosse o último e decisivo, como se fosse o fim do mundo; seguro seu rosto, beijo sua boca mil vezes e rapidamente, beijo-a no pescoço como se eu tivesse uma sede estranha, sinto o veludo finíssimo se eriçar em sua nuca. Esse fogo inútil é o que quero e insisto em que dure. Mordo-a com carinho, percebo que está de olhos fechados, a boca entreaberta, como se num transe. Dela, cada pequeno gesto é um Acontecimento. Nunca antes beijei uma só mulher em minha, ainda que as tenha amado, no passado. E se há bonança no mundo, agora, eu a quero, e digo isto para mim mesmo, enquanto estou absorto em seu ventre.

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This Article Has 1 Comment
  1. Daniel Félix Reply

    É sublime, como um filme de outra década, o decorrer do conto espelha o decorrer da vida, nos espaços o texto ganha textura sem de modo algum perder a suavidade. É da tipografia destas coisas, das quais se lembra após uma viajem, ou após um sonho; viagens e sonhos talvez pelas suas características próprias na forma de se recordar, fragmentos unidos do real que quando evocados se mostram maior que as lembranças. Daí o descrever, um conto quase sempre são dois contos, e neste, não deixa de haver as infinitudes de um cotidiano eternizado.

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