A DESORDEM DAS COISAS NATURAIS E O EXISTENCIALISMO | por Paulo Rodrigues

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“O homem é antes de mais nada um projeto que se vive subjetivamente”.
Sartre

 
 
 
 

Paulo Rodrigues

Paulo Rodrigues Poeta Brasil 150x150 - A DESORDEM DAS COISAS NATURAIS E O EXISTENCIALISMO | por Paulo Rodrigues

Resolvi reler o livro A Desordem das Coisas Naturais (Editora Penalux, 2018) do poeta Bioque Mesito, neste domingo chuvoso de abril. São cinquenta e quatro poemas que sobem a montanha do cotidiano, exercitando a musculatura de uma sintaxe surpreendente.

O poeta arranca imagens provocadoras. Transpira um tempo que fica entre “o ser e o nada”, que me faz traçar um paralelo interessante com as ideias do autor de O Existencialismo é um Humanismo. Sartre afirmou: “a vida não tem sentido algum antes e independente do fato de o homem viver; o valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo”.

Bioque assumiu a responsabilidade de um projeto de poesia para si. E vem, com muita responsabilidade, ampliando as passadas para uma obra consistente e incendiária, no sentido mais radical da palavra, porque há um engajamento discursivo nos versos do poeta, em análise. Ele é um operário dedicado ao signo verbal, com as mãos escorrendo a reflexão existencial, as angústias da modernidade líquida e o antiespaço do poema.

No primeiro texto (página 21), temos uma aproximação importante com a construção da liberdade sartreana:

ESTUÁRIO

poesia
uma insatisfação

pausa que pulsa por detrás
do mundo lâmina de alta precisão

contraventora de palavras
fuga da minha imaginação

destino que me alucina
rupestre inscrição

incêndio controlado
em minhas mãos.

Reconheço a autodescrição do nascimento da poesia. No entanto, o verso: destino que me alucina/ rupestre inscrição. Constrói um contraditório interessante com o fechamento. Na filosofia estoica, o termo latino “fatum”, que era o destino implacável  aparece acima dos deuses e dos homens. A semântica é alterada, na dicção do Bioque Mesito.

A imagem que encerra o poema são as mãos controlando o fazer, numa demonstração bem ao modo de Jean-Paul Sartre: “o corpo é um centro, em relação ao qual se ordenam as coisas do mundo e, por isso, constitui uma estrutura permanente que torna possível a consciência”.

O poeta vai mais longe, logo sabe que a poesia é a condição máxima de consciência e de liberdade para cada pessoa.

Continuando as trilhas existencialistas em A Desordem das Coisas Naturais, deparo- me na página 92, com MÁQUINA DESORIENTADA:

às vezes estou cego
erro a esquina

minha libido regozija
em busca de precisão

paro observo os andares
as nuances os delírios

quando ameaço conspiro
gozo entre as pernas dela

tristemente me despeço
volto ao mesmo lugar

Bioque tem coragem de assumir a poesia do corpo. A liberdade máxima do corpo como se rasgasse a roupa em praça pública: “quando ameaço conspiro/ gozo entre as pernas dela/ tristemente me despeço/ volto ao mesmo lugar”. Sartre nos revela também: “o corpo é por conseguinte, tanto a condição da consciência como a consciência do mundo, quanto fundamento da consciência enquanto liberdade”.

Este voltar ao mesmo lugar, é de alguma forma, retornar ao escuro da caverna, numa punição social tão bem exposta na análise da sociabilidade burguesa de Michel Foucault.

E para encerrar este mergulho no drama da existência, o poema ANTI (página 34):

às vezes o tempo alucina
parte de minhas vértebras
conheço mais beijos selvagens
que suaves segredos

a noite pousa na braguilha
das fêmeas famintas
só há um norte para libido

um pássaro que não quer partir
do rigoroso inverno
me compreende mais que tudo
às vezes uma pausa me basta

O poema busca uma antítese para abrir a ferida e a angústia. A realidade nunca é simplesmente idealizada em Bioque Mesito. Embora, tenha muita consciência ao trabalhar a imagem como percebemos nos versos: “um pássaro que não quer partir/ do rigoroso inverno/ me compreende mais que tudo/ às vezes uma pausa me basta”.

Além do mais trabalha a noção de liberdade como uma decisão poética e opõe-se ao quietismo como o filósofo que defendeu a união entre humanismo, liberdade e responsabilidade social.

 

TEXTO: PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux,2018).
Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório.
Venceu o Prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o livro inédito CINELÂNDIA.
É membro da Academia Poética Brasileira.

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