Fernando Andrade entrevista a escritora Sandra Godinho

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FERNANDO – Nas duas primeiras partes há nítidas distinções do narrar a história, enquanto a primeira há uma panorâmica sobre o enredo, focando mais a paisagem e a história, na segunda parte o narrador tem mais consciência de si, enquanto não só contador, mais confiança, quanto ser personagem incluído naquela paisagem na selva, acompanhando o padre na missão com os índios. Você acha que há esta nuance em um olhar mais centrado na segunda parte e terceira parte?

SANDRA – Na primeira parte do romance, eu quis contextualizar o leitor com a paisagem amazônica da época. Aquilo que chamavam de vazio demográfico era, na verdade, habitado por muitas tribos indígenas em completa invisibilidade; a preocupação dos governantes era somente com a defesa de nossas fronteiras e de tornar o índio “útil à pátria”. Eu busquei retratar a ditadura  militar e o que a “Aliança para o progresso” simbolizava para a região. Contextualizei o protagonista nessa época, narrando sua história pregressa , o menino João foi dado à igreja como pagamento de uma promessa, fato que por si só já traduz sua impotência diante de forças maiores. Na segunda parte, o personagem, já adulto, transmite ao leitor os fatos tais quais se sucederam aos seus olhos e, na terceira, um sumário sobre como ele lida com o que lhe aconteceu, como um exame de consciência que levou dezessete anos para ser depurado e concluído, as feridas custam a se cicatrizar e isso tinha de transparecer no retrospecto de João. O ambiente é de opressão, sempre, seja no que diz respeito à família, ao seminário ou ao período histórico-político-social.

FERNANDO – Há um jogo perverso de dissimulação de todo evento, aquilo parece uma farsa-tocaia, onde todo movimento do padre e seu objetivo parece ser colocado num tabuleiro de jogo, onde as peças parecem já estarem movidas por um ação pré-determinada. A questão da Pós-verdade me veio à mente, A relação entre fato e ficção. As versões que um governo militar sabe fabricar bem… E você tece muito bem estas redes para fazer da história algum tipo de mito? Fale disso.

SANDRA – Há o fato, há a ficção e há também as versões de ambos os lados. Não há personagem totalmente bom ou totalmente mau, se é que podemos colocar nesses termos. Eu busquei dar todas as versões do que ocorria à época, inclusive no que diz respeito ao desenvolvimento da  região, à catequização de índios, do papel da igreja e de seu relacionamento com os governantes. Há um jogo de interesses por trás de cada atitude e o protagonista, em sua ingenuidade, se vê perdido nesse labirinto onde o poder impera.

FERNANDO – Há um interessante exercício da masculinidade, no personagem, onde o menino ainda jovem, não sabe se colocar numa fronteira entre a imaginação de uma infância sonhada – uma adultice idealizada – e uma realidade de poucos recursos. Como foi o desenvolvimento do menino no percorrer da escrita?

SANDRA – A mensagem é sempre de otimismo. Mesmo em uma infância de  privação João busca se divertir, fugindo de sua realidade sofrida. Há espaço para o lirismo, para os papagaios cruzando os céus, para assistir os aviões decolando, para aventuras de canoa em busca de tracajás e de lugares desconhecidos, para sorrateiro brincar de foguista num barco, tocar a campainha de casas alheias e sair correndo, roubar frutas em quintais vizinhos, até mesmo saltar o muro do cemitério para provar coragem. Mesmo na privação há espaço para o lirismo, que nos salva da dura realidade. Mesmo na dor, no assassinato de tantos, há a esperança de se resgatar essa história para que novo morticínio não volte a acontecer. A mensagem é de esperança em um ser humano mais empático, que enxergue o outro como um igual, merecedor dos mesmos direitos que você.

FERNANDO – Não sei se você leu No coração das trevas, do Conrad, a forma de colocar o leitor no universo do enredo, me lembrou Conrad. Acho que o livro deu um filme estupendo que foi Apocalipse Now do Copolla. Aquela projeção de um indivíduo perante o desconhecido de uma selva, a relação entre civilização X Selvagem. Como foi entrar num universo tão rico e matizado como uma floresta Amazônica?

SANDRA – A cidade de Manaus é circundada pela floresta. A maioria das viagens que se faz para outras cidades é feita por barcos ou por avião. Os passeios por esses interiores, mesmo a visita a alguma tribo indígena, é sempre possível. Mas para relatar a selva daquela época eu recorri a livros que minuciavam a construção da estrada e, especialmente, o evento. O Massacre, do padre Silvano Sabatini, amigo íntimo do padre Calleri foi o livro em que me baseei.

FERNANDO – A grilagem de terras, tema tão atual, hoje, é descrita por você em 1970 de uma forma que não parece tão diferente quanto agora com o governo Bolsonaro. O ódio aos índios, ou qualquer tipo de minorias que não tragam progresso à nação. Como é percorrer um romance, que no real da coisa não andou nada em avanços sobre a questão da terra, do latifúndio, da questão agrária?

SANDRA – Apesar de eu ter começado a escrever esse livro em 2015, vi que os temas tratados dentro dele ainda são atuais. No livro, os índios foram massacrados por uma visão autoritária por causa de interesses particulares; hoje em dia, a mesma coisa acontece sob um pretexto de se desenvolver a região. A história do João faz um paralelo com a história dos índios, em que o autoritarismo cerceia a autonomia dos dois.

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