A crueza do cotidiano em As flores são duras | Marcelo Frota

Socorro Nunes As flores daqui são duras - A crueza do cotidiano em As flores são duras | Marcelo Frota
 
 
 
 
 

Marcelo Frota – escritor e professor

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As flores daqui são duras, (Editora Penalux, 2021) trazem sua gênese uma crítica sutil e elegante as pequenas coisas que formam o cotidiano. O novo livro de Socorro Nunes, se divide em seis partes e forma um quadro geral daquilo que compõe a existência. A poesia de versos simples, porém contundentes, desnuda a vida humana, em sua complexa banalidade. Nada é gratuito na obra, sejam as memórias do restaurante da Dona Ceci, sejam as constatações de um período de quarentena.

O poema é um fingidor, texto que abre o livro, demonstra em primeira mão o que está por vir.
“as flores daqui são duras/queimando ao sol ardente/tivessem nascido no sul”. Fingir que um lugar é melhor do que o que se habita, fingir que em outros ares, a vida é mais feliz, quem sabe em épocas passadas, mais simples. O poema me remeteu ao soberbo Meia-noite em Paris, filme de Woody Allen que versa sobre a felicidade, a simplicidade de outros tempos, mostrando que a resposta não está no recorte temporal, mas sim dentro de nós mesmos.

No sul, nada é mais fácil, mais simples que no Norte, ou Nordeste. A busca pela plenitude se encontra em nossos olhos, nossas perspectivas, anseios e aspirações. Solo fértil há em todos os lugares, basta o coração encontrar este terreno e dele tirar frutos, cultivar o solo, e por fim colher o que da terra vier.

Em Mercado, é perceptível a angustia com a desigualdade social e racial. “é negra a carne/ao sereno/nas noites frias/de são Paulo”. A autora versa pela violência do trabalho quase escrevo nas madrugadas paulistas, madrugadas estas que poderiam ser em qualquer cidade, pequena ou grande, de norte a sul. Mais uma vez a geografia se faz presente, e o tão sonhado e rico sudoeste do Brasil, se faz protagonista da angustia daqueles que o procuraram em busca de um lugar ao sol, de uma vida melhor.

É o retrato de um país desigual, racista camuflado, antagonista do próprio povo, inimigo da própria gente. Um exemplo do que é o “novo Brasil acima de todos”, slogan idolatrado por milhares alguns anos atrás e que, felizmente, está perdendo forças, mas não rápido o bastante.

Em noite de abismos, a voz da autora dá voz a milhares de brasileiros confinados, angustiados, em busca de dias melhores. “casas vazias/paredes arranhadas/com palavras cortantes//marias/ressurgem/dos escombros//palavras: poucas/só para não morrerem/de fome”. O poema, contundente em suas poucas palavras, é a verdade de Marias, Joãos, Pedros, Janetes, milhares de pessoas que esperam. Esperam por uma vacina, medicamentos que curam, comida na mesa, algo para se animar, já que celebrar, parece algo distante.

É um poema que fala da pouca fala. Quais são as palavras em momentos de desespero, de desilusões que parecem se acumular sem piedade? Quais são as escolhas, daqueles que quase não tem escolhas? Há escolhas? Os questionamentos que noites de abismos levantam, são nossos questionamentos diários. Nossa dúvida, ainda sem resposta.

As flores são duras abre espaço para as interpretações feitas acima, assim como para dezenas de outras, cada uma possível através da poesia contida no livro. Socorro Nunes usa de sua voz, para dar voz aqueles que não podem falar, e também aos que podem, mas escolhem se abster.
Não vivemos em tempos de abstenções, precisamos falar, seja através de protestos nas ruas, seja através da arte.

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