Fernando Andrade entrevista a escritora Vanessa Vascouto

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FERNANDO – Estamos presos pela raiz etimológica, pela raiz do sangue, mas no seu livro há uma certa insubordinação em estar num espaço muito junto e misturado. A individualidade ali é quase um dilema para tanta aproximação com juntamento da terra. Como foi (criar? pensar?) estes personagens neste meio?

VANESSA – Tanto pelo lugar quanto pelo tipo de estrutura em que vivem as personagens, amontoadas naquele espaço curtíssimo, as questões que remetem às suas individualidades ficam, sim, comprometidas – não só pela coletividade imposta, mas pelas memórias e pela falta de perspectiva que têm em comum. A todos parece reservado o mesmo destino. Há revolta nisso, mas há também a resignação. Como fugir?

Ainda assim, é inegável que a história se passe (sempre se passa) diferentemente para cada um deles. O texto em primeira pessoa vem, nesse sentido, para destacar essas subjetividades e fazer com que possam dizer individualmente “eu existo”, “eu existo acima da terra, acima da mãe, dos meus irmãos, acima de estarmos amontoados neste campo maldito”. Essa existência se reforça na linguagem particular de cada um. Foi a linguagem (sempre ela) moldada à oralidade que permitiu que Mirna, Rita e Mosquito se revelassem para muito além do apagamento determinado pela terra e suas raízes.

 

FERNANDO – Vi certos ecos de realismo mágico como do Gabriel García Márquez, onde a terra, a ancestralidade, é discutida pelo seu avesso, a leveza das ações fantásticas, ou mágicas. Fale disso.

VANESSA – Eu venho de um canto de Santa Catarina onde essas histórias são muito presentes – talvez em qualquer interior remoto, que se distancie do pragmatismo urbano, essas histórias se revelem com mais força. Especialmente na minha família paterna, os contos fantásticos, os relatos de assombrações, o uso das “simpatias” para tais e tais fins são recorrentes e perpetuados. Não raramente, para o bem ou para o mal, são maneiras eficazes de jogarem a resolução de suas desgraças pra longe de suas responsabilidades. Mas elas têm em si uma carga dramática super forte. No geral, recorre-se a elas frente à desesperança, por isso não têm a intenção de serem assim tão somente leves e fantasiosas. São seríssimas, na verdade, e norteiam o modo como essas pessoas entendem e explicam o mundo, justificam o que vem/veio adiante. Em ‘terra dentro’ elas funcionam como extensão dessa ancestralidade brutal: a escalada da desesperança – para outro plano, claro.

 

FFERNANDO – A mãe é sempre uma figura puxada para um centramento\centralismo. Mas a personagem materna parece despossuir-se da razão de todos os arquétipos que lhe dão esteio. Como você a desenhou?

VANESSA – A mãe de ‘terra dentro’ foi desenhada como areia movediça, realmente bem longe de qualquer estereótipo da mãe estruturante. Pelo contrário, ela é alcoólatra e, basicamente por isso, também é imprevisível. Isso é constantemente reafirmado na memória dos narradores: Mirna lembra dela com alguma graça, Rita tem dó, Mosquito tem raiva, mas em todas as memórias ela aparece como essa sombra manifestada em cada um dos narradores: ou de modo inconsciente (na irreverência de Mirna e na fragilidade de Rita) ou contra suas vontades (no caso do Mosquito, que faz de tudo para não repetir a mãe e que ainda assim percebe que é ela quem o emoldura: “a fruta não cai longe do pé”).

 

FERNANDO – A linguagem é trabalhada perto de um estética barroca, bastante sensorial, e climática. Como burilou-a para ter este efeito sinestésico?

VANESSA – É importante dizer que ‘terra dentro’ começou como uma dramaturgia, embora na versão para o teatro só existisse a Rita como personagem tripartida. Ou seja, a oralidade e as situações começaram a ser experimentadas cenicamente e nessas experimentações de palco houve conquistas que eu não quis perder ao começar a trabalhar o texto enquanto literatura, em especial: os sons, a cadência das falas, o ritmo de modo geral. Tudo isso levava textura ao palco e era absolutamente necessário que eu não as perdesse no papel. Assim, a lapidação do texto foi feita como se fosse encenação, em voz alta. Creio que esse tenha sido um exercício fundamental, o pulo do gato para transmitir as sensações dessas personagens nessa história e nesse lugar tão áspero.

 

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