Fernando Andrade entrevista a poeta Nathaly Felipe

poemas dissonantes nathaly felipe - Fernando Andrade entrevista a poeta Nathaly Felipe

Foto: Eri Barros

 

 

 

FERNANDO – Seu livro de poemas parece ser uma poética dos estados da anima não tocado pela razão cartesiana. O delírio e não o pensamento sistemático, o voo do pássaro e não o núcleo do corpo pisando o chão. Parece um estudo sobre o desejo pairando e se movimentado sobre as coisas-objetos. Como pensou estas questões no livro?

NATHALY – Gostaria de começar a respondê-lo, Fernando, da seguinte maneira (de certa forma parcelar, porque a escrita para mim é algo da ordem de um deslocamento profundo e contínuo): concebo a poesia como um acontecimento que institui uma experiência perspectivante e perspectivada no e com o mundo. Essa experiência, para mim, tem a ver com uma economia de afetos que mobiliza nossos corpos, nossos pensamentos e que agencia novas formas de sentir e de pensar, simultaneamente. O que estou querendo dizer é: entendo que o que escrevo também acontece, na carne do papel, como uma espécie de tatuagem cuja imagem seria algo da ordem de um atravessamento, de um encontro, ou ainda de um convívio insólito, mas necessário, de formas diferentes de um pensar criado na linguagem e de um sentir mediado (sempre por impasses) por ela. A poesia, portanto, é uma forma decisiva de pensar o mundo e nossas relações de habitação ou de passagem nesse espaço a que chamamos “casa”. Não sinto exatamente que os poemas expressem “uma poética dos estados da anima [estou entendendo anima como alma ou como remissão à parte da fatura do nosso inconsciente] não tocado pela razão cartesiana” como você formula na pergunta. Disse que a poesia é uma forma de pensar e considero que nó da questão está aí. A partir disso, poderíamos fazer um exercício em conjunto e refletir: como a poesia pensa? Nesse sentido, aproximamo-nos à noção que você mencionou: não me parece que o fazer poético (o meu ou qualquer outro, rs) seja algo da ordem de uma razão cartesiana, ainda que certas tradições poéticas busquem como dispositivo enunciativo um tipo de “linearidade discursiva” e de construção imagética, por exemplo. Não é novidade o que vou falar, mas acho que a síntese de Valéry, sobre a “lógica imaginativa”, é central para ilustrar o que estou tentando tatear por aqui. A poesia pensa muito e pensa sempre, mas a maneira como se realiza é pelas vias de uma analógica (porque além justamente da lógica cartesiana).
Suas estratégias e formas de se desdobrar extrapolam essa lógica mecânica a qual fomos ensinados a nos enquadrar. Assim, não entendo que a poesia seja um desvio à norma, à gramática, uma licença discursiva… a poesia é o próprio desvio. A terceira margem por excelência. Sua lógica criativa (não representativa), portanto, será o desvio e o atravessamento de formas de dizer que acolhem o sensível (aqui penso, mais ou menos, em Rancière) do mundo e abre caminhos para diferentes interações da comunidade em que nos inserimos. No mais, principalmente depois da experiência da poesia moderna (tendo um Baudelaire em mente), o fazer poético agencia seus próprios dramas em que se incluem (de maneira muito específica, é verdade, em cada gesto autoral), a meu ver, questões relacionadas ao delírio, ao pensamento não sistemático, ao voo (às alturas, ao sublime, se preferirmos) e à ideia de uma flutuação (mesmo que nossos pés estejam fadados a fincar o chão). Todos esses dramas, próprios da poesia, são também dramas humanos e nos acompanham há tempos, afinal (mesmo antes da modernidade poética, que apenas gerenciou, de modo distinto, questões com as quais lidamos desde sempre).
O fazer poético é, então, um ato instituído no e com o mundo. Um ato que atravessa nossas subjetividades e nos abre à alteridade, já que um dos nós importantes da trama poética é o seu endereçamento, seu convite (mesmo que problemático, por vezes) ao outro, inclusive ao mundo entendido nos termos da “alteridade das coisas”. Nessa dinâmica de mútua implicação subjaz um desejo potente: mesmo em voo distante, o pássaro nos sente e, em certa medida, cria-nos, na medida em que o vemos, em que o sentimos, em que o pensamos, em que, em suma, criamo-nos também. A poesia nasce dos limites, dos entrelugares, dos pontos contraditórios de encontro com o outro; floresce nas fissuras de nossa subjetividade espraiada no mundo… nasce no limite do encontro do voo e da queda. É mais ou menos por aí que penso ao escrever. E como é difícil falar dessas coisas… porque tudo isso, parece-me, reside em um campo de intencionalidade e não necessariamente de enquadramento, mas, quando convidados a expor discursivamente algo, que é, muitas vezes, da ordem do inominável, caímos na teia cartesiana, como você se referiu antes, rs. A poesia me permite fugir um pouquinho disso e por isso sou grata. Como dizia Cecília Meireles, a vida só é possível reinventada.

 

FERNANDO – O masculino no seu estado domina-segrega, não parece estar no mundo sensível das coisas; captar um voo imóvel de um beija-flor. O corpo do homem é sempre violento na sua mobilidade. No feminino temos um estado de voo que é pouso sobre o lugar mas também peregrinação contemplativa de um olhar sensível ao mundo. Me contento a dizer que tua poética é anticivilizatória. Fale um pouco disso.

NATHALY – Se pensarmos em uma poética anticivilizatória nos termos da tentativa de criação de pensamento/ forma sensível, isto é, dentro dos domínios de uma poética analógica ou de “lógica imaginativa”, como tentei sofrivelmente sugerir na primeira resposta, acho que o que o escrevo tem a ver com essa anticivilização. Podemos, em poesia, “quebrar” o signo já submerso em camadas de significados convencionais, em que o dispositivo-língua exerce suas formas de poder. E fico muito feliz com essa sua leitura que é atenta, generosa e me abre possibilidades para pensar sobre este livrinho de estreia e sobre uma porção de outras coisas da vida, rs. Quanto à divisão entre masculino e feminino: eita! Fernando, você me pegou aí! Eu não havia nessas questões antes, obrigada por me fazer pensar nisso. O que eu posso dizer, por ora, é que os poemas expressam, sobretudo, uma tentativa de fazer a vida viver, sabe? Deixar a subjetividade lírica encenar uma espécie de contradição própria da nossa existência… lutando para sustentar-se, seja em pouso, seja em voo… fugindo da gramática que convenciona e que aprisiona nossos corpos e nossas mentes. Sendo assim, o feminino entra como essa potência matricial e uterina de criação, de agenciamento das próprias razões de existência do “eu” que sente “tudo de todas as maneiras” (para lembrarmos de Álvaro de Campos) e que suporta todo “o sentimento do mundo” (ai, Drummond!). Mas sentir tem a ver com o desejo e com o sofrimento, não é mesmo? Não à toa, a criança grita ao nascer. Como escreveu Geruza Zelnys, respondendo à uma figura materna: “ô minha mãe/ eu dou à luz os meus escuros”. Assim, fazer conviver a luz e o escuro é uma forma de habitar anticivilizadamente o espaço que nos cabe.

 

FERNANDO – Há uma musicalidade impressionante associado a um ritmo melódico, com repetições que dão ao poema um linha de cântico, não religioso, mas trovado como baladas que Hilda fazia muito. Como foi costurando esta linha melódica?

NATHALY – Sugiro que a língua, por si só, tem uma musicalidade própria. Como se houvesse, mesmo em uma fala trivial, um canto subterrâneo. No mais, entendo que o ritmo é o dispositivo que cria e regulamenta a experiência poética (não só o ritmo sonoro, mas também o visual, sempre em ressonâncias). Podemos ter poemas rimados, escritos em formas fixas, metricamente calculados, mas também podemos ter poemas com versos brancos, livres; estrofes-parágrafos, modulação prosaica e por aí vai… O que não perdemos nunca: o ritmo e o seu corte sintático caracterizado pelo enjambement (e, assim, a própria forma poética “salta ao abismo” ou “voa alto demais”, concretizando as razões da própria poesia, no amálgama tema/matéria). Pensando no que escrevo, diria que alguma métrica, em redondilha, foi trabalhada para que pudesse haver, quem sabe, um tipo de curto-circuito entre o regime rítmico familiar aos ouvidos e a estranheza de certas imagens recorrentes no livro (que acompanham ritmicamente a repetição melódica que você observou) e que se aproximam, apesar de diferenças inegáveis, à uma modulação de canto/cântico profano (porque aberto à comunidade, manifestado pelo desejo da escuta do outro), ao trovar “d’amor” pela vida, mesmo quando tudo dói (e, nos últimos anos, como temos “nos doído”). O ritmo é a gramática do poema e, por ele, o texto se trama enquanto paradoxal “ilusão real”. Hilda Hilst (que linda lembrança!) nos ensina, pelo ritmo que: “[…] imaginamos/ cousas absurdas/ de realização./ Cousas que não existem/ e cujo valor/ é o de consistirem/ parte da ilusão.”.

 

FERNANDO – Há uma certa aresta pagã na minha opinião, na sua escrita, onde a natureza, o andar sobre o mundo não obedece a preceitos de pregação, ou de doutrina. Há uma liberdade tanto no aparato da linguagem em deslizar sobre sentidos presos amordaçados pelo signo, quanto uma liberdade de nomear e conceituar as coisas de forma férrea. Esta liberdade tanto na linguagem quanto na fuga de definições como fez no seu livro?

NATHALY – Entendo a poesia como algo que flerta com uma “Margem de/ erro: margem/ de liberdade.”, como escreveu Orides Fontela. Nestes versos exemplares, temos palavras que sintetizam a poesia como margem de (à margem de também), erro (também como errância) e, sobretudo, liberdade de pensar, bem como de ser-estar no mundo (o que inclui um posicionamento ético). Assim, o ato poético mantém sua própria política de escrita que não se submete ao amordaçamento dos signos, dentro daquela lógica cartesiana que você observou anteriormente. Como disse antes, entendo que a poesia acontece, realizando-se em um jogo de sobredeterminações simultâneas entre a subjetividade e o mundo, em que o sujeito, como um campo de ação, (re)faz-se nesse mundo, que o afeta. A liberdade, dessa maneira, entra em nossa conversa, em sentido vário: tanto como condição poética da linguagem em se esgarçar, provocar a si mesma; como perspectiva poética, na aceitação do impasse como (im)potência da instituição da subjetividade lírica, que joga/luta com o “sentimento do mundo”; como necessidade poética, nos termos extrapolação da “doutrina da língua” (que contraditoriamente faz a mediação das experiências); como busca poética, ou melhor, como necessidade ou emergência de diferentes formas de convívio; como capacidade poética (voltagem?), entendida naquilo que receio jamais poder explicar, mas que namora com a primeiridade de um sentir com/por/no mundo.

 

***

* A foto do livro foi tirada por minha amiga-irmã Eri Barros. No Parque da Água Branca, lugar que amo por tudo, inclusive pelas galinhas (eu amo galinha, tem galinha no livro, tem galinha num poema do meu amigo Nícollas [que poema!]… acho que é culpa da Clarice Lispector, do Fernando Sabino e do Caio Fernando Abreu, porque instituíram as galinhas como “animais literários”, quem diria?, rs) que passeiam sossegadamente por lá. Amo este parque principalmente porque um dia meu vovô (amor da minha vida) foi lá comigo e a gente ficou olhando para a mansidão dos bichinhos por horas. Eri não sabia como esse lugar é especial para mim, mas o coração sabe de muitas coisas, não é mesmo? Essa foto é uma linda memória afetiva. 

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