OS DIAS COMPRIMIDOS | Adriano B. Espíndola Santos

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Adriano B. Espíndola Santos

Escritor. Advogado humanista. Mestre em Direito. 

 

 

Esses dias comprimidos alargam a minha alma ao infinito. A leitora pode ficar confusa: “O que isso quer dizer?”. Simples – caríssima amiga –, e acho que nessa jornada não sou o único: sou acometido, mais que antes, pelo vagar; uma tal doença atribuída aos lunáticos, vagabundos e afins. Não sei se felizmente ou infelizmente. Pelo menos, distancio-me das incongruências, das grosserias, das desgraças que jogam sobre nós, os mortais – sem querer, estamos atados aos desmandos desse governo.

Num dia gris, que custo a esquecer, quando o déspota, em meio à pandemia e aos altos índices de infectados e de mortos, respondeu a uma jornalista: “E daí?”, rasguei-me por dentro, de ódio, e isso não é bom para um senhor de setenta e dois anos, que passou por poucas e boas – mas nunca viu nada igual: isso posso assegurar.

Ainda, um pouco antes, o tinhoso mostrou sua completa falta de empatia ao desprezar a saúde dos idosos; não só ele, mas seu séquito precário, que convocam os incautos à esteira da degradação. Não queira imaginar como fiquei: no mínimo, um trapo.

Só, sem viço, amparado à imagem sempre presente de minha adorada esposa, Jacira, e, vez por outra, a uma ligação perdida de Luciana, a única filha, que resolveu se meter nessa política rasteira – segundo diz, não tem tempo para nada –, vou engolindo, calado, ruminando, pão e garganta secas, os dias comprimidos.

A leitora pode julgar que descuramos no amor à Luciana. Não; absolutamente, não. Ela foi criada com carinhos desmedidos; e falávamos, eu e Jacira, que amor nunca é demais. Mas não sei o que deu à minha menina, àquela criança inteligente, emotiva e serelepe, que percorria os campos floridos, flutuando; para descambar em volúpias fugazes de moçoila que supõe ganhar no grito, com a voz que dilacera as já frágeis partículas de amor. Sinceramente, com muito pesar, para manter o cerne, digo que me abstenho de conversas com Luciana: falo de indisposição; de dor de cabeça; até de desânimo, para ver se ela percebe o meu desgosto.

Para o mundo, Luciana estampa, soberba, o semblante de incorruptível – espero que sim, pois que educação teve de sobra. Mas, ao se alinhar com um e outro, sujeitões assaz conhecidos, pode vir a colaborar, talvez de forma inadvertida ou cega, com as trapaças dos ratos.

A razão de meu desabafo, nesta carta, naturalmente tem a ver mais comigo do que com Luciana – ela entrou aqui, e peço perdão por isso, porque a contrariedade me persegue, também; fazer o quê?

Deixemos Luciana de lado. O fato é que, nesse claustro forçado – obviamente, entendo suas razões, sendo pesquisador; farmacêutico de formação –, decomponho-me em mil Sérgios. Primeiro, com a sorte de ter um apartamento minúsculo, do tempo do bumba, passo longos momentos a dedicar-me à limpeza, sem o ardor de Jovina, claro, a diarista, que deixei de sobreaviso e, lógico, recebendo regularmente os valores a que faz jus, para a sua digna mantença.

Ponho, regularmente na vitrola, um disco que guardo com muito carinho, que ganhei de Jacira, ainda nos idos de setenta, início de nossas aventuras: Chico Buarque; e solto, repetidas vezes, “Cálice” e “O meu amor”, com um leve receio de furar o disco.
Pretendo encomendar um semelhante, exclusivamente para ser usado; o outro, alçarei ao posto de relíquia, emoldurado na sala, com as declarações de meu amor.

***

Se saí quatro vezes, nesses noventa dias de confinamento, foi muito. Não devo arriscar. Compras nas farmácias e no mercado não são nada elaboradas; só o trivial. José, um rapaz muito distinto, que conheço há anos, um faz-tudo do mercado, presta-se gentilmente a buscar e a subir com as compras, mesmo as da farmácia, que fica a três quadras daqui. A leitora, curiosa como eu – e isso não é um mal, não interprete esta nota como objeção ao seu ato –, pode se interrogar acerca das importantes ocasiões em que tive de sair; então, relatarei (ou me delatarei): uma, por conta de José estar doente da perna; algo não diagnosticado ainda, mas felizmente está bem agora; outra, para ir ao bendito banco, que não facilita a vida de ninguém; e duas destas ao dentista, o Dr. Cláudio Vilaça, filho de meu amigo de infância – claro, sempre com toda a proteção, máscaras, batas, até um jato de uma substância desinfetante tomei; em suma: por sentir fortes dores, fui compelido a fazer um urgente canal.

Contudo, arranjo os meus momentos de deleite, como o faço neste exato momento: estou a vagar, a procurar as palavras certas para lhe tocar, caríssima leitora; para ser poético – quiçá, um sonho meu.

Essa verve, que redescobri recentemente, vem me salvando de uma maneira extraordinária. Sem pretensão nenhuma – e, por isso, tiro o peso de uma conjecturada publicação de um livro –, tenho o gosto de largar umas linhas para a posteridade.

Pode ser que, mais à frente, sejamos resgatados e entendamos os três fatores abstrusos e carnais: pandemia, idade e isolamento; para saber o que, de fato, vale a pena.

Sinto muitíssimo por essa provocada convulsão social. Mas, creia, não sou um velho resmungão, que se queixa a torto e a direito, de carestia, de achaques; ponho-os longe dos olhos e do coração. Ao menor sinal, recorro à minha amada Jacira, sorridente, na foto que petrificou o magnífico instante; e faz, ainda, resplandecer sua alma translúcida. Era dignamente pura, minha Jacira; sem igual.

***

O quarto é o local em que menos fico. Recosto-me, às vezes tarde da noite, à beira da televisão; acompanhando não essas notícias horrorosas, mas, sim, os programas relacionados à natureza, à vida selvagem: como me encantam! Aí, pego no sono e sonho que a vida, ainda assim, é uma prosa que se refaz; ou que pode ser refeita pelas mãos hábeis de um idealista escritor.

Há lampejos em que me socorre Jacira, entrando pela porta da sala. Os sonhos com Jacira são tão vívidos que minha vontade, quando isso acontece, é de não acordar mais. Se me desperto, como uma criança, peço a Deus para continuar sonhando. Os dias comprimidos se espraiam para o meu íntimo gozo – disso eu sei – quando sinto o primeiro raio de sol me tocar: apanho a vitamina D necessária, recobro os sentidos e me preparo para mais um almejado, abençoado e preguiçoso vagar.

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Ah!!! se a vida fosse poesia, mas também é conto e crônica… e contos são tacapes literários que nos afligem a cabeça… os galos fazem bem quando cantam as verdades… penas que o capetão não seja letrado, muito menos acesse esse blog… o capiroto do planalto prefere ler bula de ivermectina e cloroquina…

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