Fernando Andrade entrevista o escritor Nélio Silzantov 

NÉLIO LITERATURA E FECHADURA - Fernando Andrade entrevista o escritor Nélio Silzantov 
 
 
 

FERNANDO  – Numa ação única de um acidente de ônibus você consegue fazer um romance totalmente polifônico, com múltiplas vozes e com camadas de pontos de vistas sobre o evento que descortina toda uma semiologia de uma tragédia. Com foi este processo na escrita?

NÉLIO – Exaustivo e prazeroso. Primeiro porque o texto passou por várias versões até alcançar um tom razoavelmente adequado para cada narrativa, de modo que o discurso revelasse um traço específico de cada personagem, tanto no que diz respeito à identidade delas quanto aos estados de espírito em que se encontram em cada situação. Depois foi preciso resolver o problema da unidade dessas vozes, como reuni-las sem que isso não causasse um estranhamento desnecessário. Desde o início a intenção era fazer com que cada personagem narrasse a sua própria história, representando não apenas o perfil psicológico delas e a imagem que constroem do Outro, como também simbolizar o seu lugar de fala, para legitimar as questões que são problematizadas ao longo da narrativa — independente da minha visão sobre elas. Ocorre que o texto inteiramente narrado em primeira pessoa dava à obra muito mais uma cara de antologia de contos do que de romance propriamente dito, se levarmos em consideração os moldes mais tradicionais. E como a conversão para a terceira pessoa não soou agradável em alguns casos, a solução foi expandir a participação do narrador — que a priori funcionava apenas como uma voz introdutória de cada capítulo, como numa narração em off —, fazendo com que a sua voz ecoasse de modo mais contínuo e simulasse uma performance. Ao emprestar a sua voz para narrar em primeira pessoa, Zébastião assume a regência desse coro e ao mesmo tempo se torna o que em teoria literária se caracteriza como narrador performático

                                                                                                                    

 

FERNANDO – Há uma relação dialógica entre sua forma de narrar múltipla e polissêmica, com um discurso que podemos atentar para uma desumanização através do julgamento feito por juízos de valor que parece só piorar na sociedade midiática que estamos atolados. Mídias sociais com as fake news, gabinetes do ódio. Como esta linha narrativa atravessa todo este pântano do discurso do ódio ao outro, com rivalidades, antagonismos e cancelamentos? 

NÉLIO – Quando pensamos sobre a condição humana e a influência das tecnologias na contemporaneidade, o que se torna cada vez mais perceptível no comportamento dos usuários da internet é justamente esse processo de desumanização das pessoas, ou seja, a redução daquilo que entendemos como essência humana em cada indivíduo até a sua eliminação, ou apagamento da sua existência nos meios em que estão inseridas. Esse mesmo processo ocorre de inúmeras formas no modo offline, isto é, no nosso convívio diário com as pessoas nos espaços físicos, seja por divergências políticas e ideológicas, ou por qualquer outro caráter perverso, narcísico ou egóico. Costumo dizer que Desumanizados traz consigo inquietações que me acompanham desde quando me entendo por gente e que a partir de 2015/16, se tornaram mais inquietantes com o agravamento da crise política no país e dos males que alicerçam a nossa sociedade, como: racismo, misoginia e homofobia. Uma das primeiras questões que busquei problematizar, nessa perspectiva, gira em torno da natureza humana, ou seja: se somos o que somos antes mesmo do nascimento e assim seguiremos até o fim de nossas vidas, ou se algo ou alguém tem a força de subverter nosso caráter. Era óbvio para mim, e creio que assim seja para muitos, que até mesmo o verme mais asqueroso de todos os homens tem lá, entre os seus, alguma porção de bondade, de virtude louvável, exemplo a ser seguido, etc… — basta olharmos para a veneração que muitas pessoas manifestam com orgulho pelos personagens nazifascistas do nosso tempo, e a facilidade com estes apoiadores negam ou desdizem quaisquer acusações que recaiam sobre eles. Como nunca me pareceu atraente a defesa de uma tese ao escrever um romance, ou oferecer ao leitor qualquer opinião que eu tenha sobre os temas apresentados, o intuito ou intenção artística em Desumanizados busca estabelecer um diálogo com o leitor por meio da inquietação e provocação, como se espera que ocorra com as obras de artes e suas diversas expressões. Outro grande desafio foi me apropriar das time lines das redes sociais e as seções de comentários dos portais de notícias como matéria prima para transformar em texto literário. Resta saber se obtive êxito na empreitada ou não, coisa que somente os leitores poderão dizer. 

 

FERNANDO – No seu livro há uma espécie de filosofia do cansaço, do esgotamento físico e espiritual, onde os personagens entram numa pulsão de morte irreversível. E a viagem do ônibus parece a única possível metáfora para uma catarse sobre expiação de um mundo que não é civilizado há muito tempo. Fale um pouco disso. 

NÉLIO – Certamente, a finitude da vida é considerada por inúmeros artistas e filósofos como o tema mais obsessivo de todos os tempos, a ponto de muitos denominarem a morte como a musa de suas inspirações. Antes mesmo de trabalhar com a relação estabelecida entre Arte-Vida, na minha graduação em Filosofia, tal questão já se apresentava para mim como um dos mistérios mais intrigantes, e quando levei mais à sério a ideia de escrever um romance e esbocei as primeiras ideias, tomei como ponto de partida a visão de que a morte iguala a todos, independentemente de como cada indivíduo conduziu sua própria vida. Ocorre que, como bem sublinha Lima Barreto: “Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa”. A partir disso, outro problema a ser resolvido era como inserir um maior número de personagens dentro de um mesmo incidente trágico, sem apelar para algo mirabolante e fosse possível explorar esses temas. Ou seja, como criar um cenário extraído do cotidiano de qualquer pessoa em qualquer lugar no mundo, que pudéssemos pensar sobre o limite da condição humana, a fragilidade e a força das relações sociais, a finitude da vida, e, talvez mais do que estas situações-limites, repensarmos em como estamos inseridos nesse cenário. O que ninguém esperava que acontecesse neste momento (por mais óbvio que fosse até mesmo para os mais pessimistas) é que a Vida se encarregasse de nos inserir num cenário pandêmico justo agora. De qualquer modo, a questão que continua latente com a leitura do meu livro ou com o enfrentamento das crises que se apresentam agora e se apresentarão depois é a mesma, ou seja: de que modo estamos inseridos nas experiências trágicas e quais são as lições que podemos tirar delas? Se para algumas personagens a morte é a única saída possível para o estado de angústia e desespero em que elas se encontram, me interessa problematizar de que modo podemos encarar esse mesmo cansaço, esgotamento físico e espiritual sem recorrermos a essa saída ou qualquer auxilio externo-sobrenatural. Suspeito que a Arte seja o melhor caminho. 

 

FERNANDO – O personagem que conta a história parece ser um homem ligado a algum tipo de sacerdócio da igreja e que tem um inimigo ligado à terra. Qual é sua potência dentro do enredo, e por que ele se mostra tão velado ao leitor quanto a sua corporeidade? 

NÉLIO – A humanidade, com todas as imperfeições, é a sua maior potência. Como dito na segunda parte do prólogo, Zébastião abre mão de sua “autodefesa e promoção para ascender ao palco a banda podre da natureza humana, e assim os moribundos possam rasgar suas próprias feridas para que vejam a cor e sintam o gosto e o cheiro de seus sangues”, tornando-se em consequência disso num “mero antagonista de mim mesmo, o anti-herói de minha própria existência”, como ele mesmo ressalta em outro momento. Por mais expositivo que seja o ato narrativo, sobretudo quando ele ocorre por meio de uma performance, o fato desse narrador-personagem ser vítima da invisibilidade social torna o labor com a linguagem um desafio ainda maior, quando um dos objetivos é tornar evidente esse velamento. Ainda que o Zébastião reivindique para si o posto divino abandonado, ou encare em pé de igualdade qualquer força sobre-humana, o dever que ele assume na narrativa é o de se tornar apenas um canal por onde as vozes que foram de algum modo silenciadas possam ecoar, mesmo que isso custe a sua liberdade ou até mesmo a própria vida. 

 

FERNANDO – Seu livro me lembrou os filmes do canadense Atom Egoyan, inclusive ele tem um filme sobre acidente de ônibus. Com pensou seu enredo na questão do prisma cinematográfico? 

NÉLIO – Outra questão que tenho dito ao comentar sobre a feitura do romance é que me interessa muito as diversas expressões artísticas e suas linguagens. Na tecitura textual de Desumanizados há uma tentativa de estreitar as relações entre Arte de rua, Cinema, Música e Teatro, até o limite imposto pela própria obra literária, enquanto objeto físico e/ou seu suporte material. Como o próprio narrador-personagem se autointitula “a única testemunha viva entre o céu e a terra”, e se põe a narrar para seus colegas de cela os detalhes da tragédia experienciada por ele, não há muito como fugir desse prisma cinematográfico. Até mesmo porque a contação de histórias por meio da oralidade promove no ouvinte a evocação de imagens muito próximas daquilo que estamos habituados a ver no cinema. Há uma espécie de mergulho no fluxo do inconsciente e das memórias, bem como uma mescla entre o pensamento mais racional e o delírio, algo que vi pela primeira vez em Der Steppenwolf (1974), roteirizado e dirigido por Fred Haines, e em Memento (2000), de Christopher Nolan. Assim como neste último, em Desumanizados a ordem cronológica das narrativas se reveza entre o passado e o presente continuo, ou mais precisamente, entre o passado remoto (que compreende a infância e adolescência de algumas personagens), o passado próximo (relativo aos dias que antecedem o acidente do ônibus), o presente do passado (período em que Zébastião discorre sobre seu depoimento e contação da história para os colegas de cela), e o agora propriamente dito ou presente do narrador, que ocorre quando Zébastião encerra a narrativa. De acordo com a professora e poeta Maria Lucia Dal Farra, esse mesmo recurso é utilizado pelo escritor português, Vergílio Ferreira, em Alegria Breve (1965), obra que utilizei para desenvolver a minha pesquisa de mestrado em Estudos de Literatura no PPGLit da UFSCar. Há um tributo prestado em minha obra ao mestre português, com algumas referências nas entrelinhas, assim como me referencio a outras tantas obras e artistas que falaram sobre a Morte sem apelar para o melodrama, a banalidade ou qualquer outra intenção que ela não mereça. Saber que o colega enxergou esse amálgama artístico e temático em Desumanizados é um bom indicativo de que a tentativa e o esforço valeram a pena. 

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