Corpos abertos
“Você, João, não sabe um terço de minha vida; e, ainda por cima, quer meter o bedelho onde não deve? Tenha brio e dignidade de homem!”. A relação, recheada de contendas, não demarcava meios nem saída para se arrumar. Os filhos, logicamente, pagavam o pato. João Filho, o mais velho, desde que se entendia por gente, tentava aplacar os ânimos com choros mofinos, quando os costumeiros trovões arrebentavam a casa oca; que ecoavam, ecoavam eternidades – enquanto André, o caçula, se eximia e se alheava do assunto; talvez, uma defesa natural para se livrar do que intuía não ter responsabilidade.
João passava longas temporadas fora de casa. Era caminhoneiro. De propósito, arranjara um serviço de descarregador de caminhão, ainda no começo do casamento, para não ter de ouvir os murmúrios e as cobranças da mulher. Com o tempo, albergado por um adiantamento de herança, dada pelo pai para se safar da insistência, comprou um veículo usado, para fazer fretes, e, logo depois, um caminhão, igualmente usado, caindo aos pedaços, mas que atendia ao seu intento de homem errante.
Ele morava, bem dizer, na boleia, e ali se virava como podia. Preparava os alimentos, nada elaborados, para passar as carências. Falando em carência, deu de arranjar subterfúgios para a solidão, e começou a fumar e a beber, algo relativamente constante – em cada botequim de beira de estrada se demorava em goles agudos de cachaça; e, daí, sabe-se lá Deus como, pegava no volante. Não tinha amor à vida, muito menos às dos seus. Pensava que teria feito mau negócio – isso, tratava o casamento como mero negócio, já que o seu pai incutiu em sua cabeça que casar com Celma seria um alento para a economia da família, pois que, além de prendada, o seu pai era possuidor de uma ruma de bens semoventes, como vacas, bezerros, cabras e afins. O mau negócio é que o sogro, sujeito cabreiro, de pouca conversa, era muquirana, em sua concepção. Afora ter dado uma casinha puída, mal-amanhada, não se dispôs a arranjar nada mais – em suas palavras após o fatídico dia do casamento: “Se é assim, um troço açodado da moléstia, que se virem!”. João esperava que, no decorrer da jornada com a esposa, o velho fosse capaz de liberar, pelo menos, bons trocados, para sustentar os seus desejos, de homem apegado às coisas mundanas. Nada. Não sobrevinha absolutamente nada.
As brigas com Celma tinham um motivo velado: o montante negado. João achava que o velho seria obrigado a lhes prover de tudo, inclusive da alimentação. O fato de João ser pai, arrimo de família, era um adendo, um complemento, e, por isso, julgava que o pouco que contribuía já era demais. Não fosse a ajuda à socapa da amável e caridosa mãe de Celma, dona Saturnina, a família realmente estaria na penúria, dilacerada pela dor e a fome.
Quanto mais João percebia que não havia condições de suplantar o fado, pesavam sobre os ombros de Celma deveres e ordens para o cuidado da casa e dos meninos.
Exigia além do normal; algo sobre-humano para o que se pode imaginar. Celma, que não contava mais com qualquer apoio que viesse do marido, ia arrastando a vida, arranjando uns mirrados dinheiros com a elaboração de peças de crochê, uma arte aprendida com a mãe e a avó. Sem crédito, e ouvindo barbaridades de seu Nonato, o dono da bodega, ainda assim, humilhada, conseguia pegar punhados de feijão e farinha, para o trivial, que não davam nem para a semana. Os grãos eram contados, e ela fazia o combinado com os filhos: “Se a gente economizar no almoço, sobra mais para a janta”.
As crianças assentiam, com olhos cortantes de cachorros baldios.
Se Saturnina despontasse no horizonte, era sinal de fartura. Só que a velha senhora, cansada da lida no campo e dos descomunais afazeres domésticos, vinha de tempos em tempos – e, aí, pode-se contar de mês em mês. Trazia, escondido nas longas saias de chita, quando dava, sacos de feijão, arroz… até mel e queijo. Celma e os filhos enchiam os olhos, com brilhos indizíveis de ressureição, e lambiam os beiços de desejo.
E o principal, Saturnina acomodava e dadivosamente conferia a esperança; que se podia acreditar em dias melhores, em redenção.
“Minha filha, não faço muito; faço o que posso, como posso, muito menos do que queria!”. Celma caía ao chão, beijando-a, e lavava seus pés em lágrimas, prontificando-se em bênçãos e gratidão. “Não precisa agradecer. Faço de coração… Na verdade, quero lhes tirar desse sufoco; vocês não merecem isso. Não sei onde estava com a cabeça em aceitar que você se juntasse com aquele traste, que não serve nem para lhe dar um apoio moral. Toda a carga na criação desses meninos fica com você. Meu Deus! Eu tenho pena, minha filha, muita pena desse fardo que carrega. Mas isso vai se resolver!”.
Contava dois meses que João não aparecia. Celma já dava o caso como abandono; que ele teria arranjado uma cabocla no meio do caminho, se engraçado e ficado por lá. Até sentia alívio, ainda que João Filho, o único, sentisse falta do pai. Este, o rebento mais velho, sendo manhoso e necessitado, nas raras vindas do pai, agarrava-o, como se pedisse socorro. Não sabia proferir palavra, só compreendia que o pai, um erro conjecturado, poderia mudar, ser verdadeiramente o que ele sonhava. Celma não cria em nada. André, arredio, se visse o pai, corria para os fundos da casa, e dele não discernia perspectiva.
Numa manhã, como todas as outras, com o sol de rachar, Nonato rebentou o tempo, desvariado, ou revoltado, alegando que, se não tivessem dinheiro para lhe pagar, que vendessem a casa, papel passado; que ele mesmo compraria e, ainda, por compaixão, dava um crédito de um ano de alimento livre. O efeito se cumpriu, dada a pressão voraz, e Nonato ficou com a casa. Celma, com os meninos e tudo, ficou mendigando a um e outro um lugar para ficar. Arranjou, colado às paredes da igreja, um quarto e sala, que servia para a acomodação de algum viajante; mas o padre determinou:
“Filha de Deus, não poderá ficar mais que um mês, senão vou deixar meus convidados na rua… Como posso?! Como posso?! Se ajeite!”. O alojamento, segundo a cozinheira da casa paroquial, prestava para guardar entulhos; era infestado de ratos e bichos medonhos, inclusive mau assombro. Sem escolha, Celma achou que seria mesmo passageira a estadia e que, dentro de um mês, o carrasco do marido apareceria e seria, assim, obrigado a acomodar a situação.
Com quinze dias, o aperreio abateu Celma. João não viria mesmo. Nonato, sim, fez questão de ir ao seu encontro e dar a notícia: “Dona Celma, vamos lá, sem cerimônias: um caminhão tombou para as bandas de Assu, no Rio Grande do Norte, morrendo queimadas duas pessoas… O caminhão era do seu marido!”. O fato não era novo; a notícia é que demorou a chegar. Havia, como supôs Celma, ocorrido há três semanas. A polícia, descansada, não se prestou a comunicar à família. Soube-se pela televisão, por programas sensacionalistas, sobre a dita “difícil elucidação dos fatos”.
Como os meios de comunicação eram escassos, somente agora Nonato, o único dono de um aparelho de televisão nas redondezas, agarrou a novidade e quis, vexado, repassar à viúva – valendo-se, maldoso, de que Celma estaria atada aos seus mandos por um largo período.
Ao contrário do que o bodegueiro poderia prever, nenhum dos três esboçou reação. Nonato se incomodou, jogou as habituais imprecações, declarando, decidido,
que não arranjaria mais um tostão para que trouxessem o corpo e velassem o morto dignamente. Não fez falta. Celma deixou que a família de João providenciasse tudo.
Para os parentes afins distantes, que questionaram a sua apatia, Celma simplesmente largou: “Eu não tenho forças, nem dinheiro, e ainda cuido desses meninos. Sabem, ao menos, que João deixou dívidas? Pois então, resolvam…”. Assim resultou. E ela falava a verdade, não tinha forças para subsistir; e, além disso, ter de despender dinheiro fiado seria inadmissível, o decreto da morte.
Saturnina, sacudida por um clamor sobrenatural, alcançou o ocorrido, saiu às pressas, abandonando o que tinha para fazer, e pôs-se a consolar a filha e os meninos.
Não pareciam amargurados ou revoltados. Quedou mais tranquila. E, compreendendo isso, revelou o que esperavam os corações ávidos: “Seu pai, Celma, agora lhe perdoa e tem pena de você. Ele me segredou ontem. Na madrugada, revirando na cama sem conseguir dormir, levantou-se, me acordou, e disse que trouxesse você e os meninos para morar com a gente… Arrumem-se, meninos! Vamos todos para a casa da vovó!”.
Esqueceram-se de algum passado. Nada lhes pesava mais, a não ser as trouxas que teriam de levar, rapidamente aboletadas num jumentinho de carga. Subiram nos três animais que Saturnina havia trazido e foram, alegres, de corpos abertos, se abraçar com a tão almejada redenção.
Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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