Palavra Cotejada | conto de Cleber Ferradeira

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Cleber Ferradeira Sales Bezerra, carioca, 40 anos, formado em Letras em Português-Literatura pela UFRJ (2004); em Português-Latim, pela mesma instituição em 2013; e pós-graduado em Língua Portuguesa pelo Liceu Literário Português (2016);professor do município de Nova Iguaçu (2016) e de uma escola particular na Barra da Tijuca, chamada IBPI (2018). Atualmente, pós-graduando em Psicanálise – teoria e prática – na USU (Universidade Santa Úrsula – Rio de Janeiro).

 
 

Palavra Cotejada

 

Todos somos um personagem de Clarice Lispector, bem, não é bem assim, todos nós somos somos (dobrado) passíveis de ser um personagem clariciano…, piorou.
A vantagem de de ser gente é que todo mundo poderia ser uma personagem de Clarice, daqui para frente vai ladeira abaixo. Uma vez tentei explicar a epifania: imagine, é imprescindível imaginar. Uma pessoa se encarrega de sua vida e se depara com uma vontade irresistível de se realizar. Tenho que ir pra China. Talvez, o picolé dragão chinês, à contravontade tomado para acalmar o calor daquele dia infernal de trabalho. A marca não era bem dragão chinês, mas como queria ver aquela gostosa, sentada à sua frente no metro, toda nua, peladinha, peladinha…
“Huuummm, diliça!”, o biquine não passaria de mero detalhe. A China apontou o caminho, não fazia a menor ideia, mas estava disposto. Conferiu as economias da carteira, sem a menor chance de sua conta bancária concordar, as contas careciam uma soma consumida pelos empréstimos contraídos para investir.
Deixou pra lá, afastou a moça de sua vista, descendo na estação central pela porta traseira, sempre embarcava longe da escada rolante para apanhar do trem.
Desistiu…, desistiu de ir para o trabalho, ao lembrar-se de um restaurante chinês, cujo prato descartara o preço, a fissura pelo biscoito da sorte; só passara uma vez pelo lavabo, pra ver como era por dentro, precisava, ainda, lavar a louça de casa, deixada na pia há num sei tantos dias, ouvia a água corrente do mijo caindo no chão, até os pingos caírem dentro do vaso. O Mac Donalds era logo ao lado, se comprasse algo para beber, poderia continuar a andar, um milk shake não faria tanta diferença se apertasse o passo e sentia um cheiro que não caía bem, aliás aquela mistura de suores do povo da Central do Brasil, como nunca teria reparado naquela nhaca e ouvia o gemido da morena na sua orelha, toda vez que tomava mais um gole do canudo, puxando com força a gordura da cinta para disfarçar o incômodo do peso. O canudo lhe causou péssima impressão, jogou a metade do copo fora, vou precisar de foro privilegiado se encontrar aquela gatinha de novo…, quem dera, quem dera, voltou a soltar a cinta e fazer força para chegar ao último furo…, o pino não queria entrar, mas alargou a racha com a força, jogou a camisa por cima e apertou o passo para voltar para casa, a pé, dessa vez não pagaria passagem de volta, mesmo com a gratuidade garantida, não valia a pena subir a plataforma do Brt pela beirada lateral, vendo todo mundo rir da sua cara, por causa da morbidez de sua face bochechuda.
Passadas as estações, foi chegando a casa morto de cansaço, os pés em frangalhos, já o alertaram que teria de amputar…, talvez, não ligava muito se tivesse de parar. Chegava já para sair de novo com sua barraquinha de cachorro quente, era o tempo de esquentar a chapa e derreter o sebo de cada dia, como acumulava fácil e rapidinho ficava tudo brilhoso…, quem seria o primeiro a pedir refrigerante? Teria de voltar para pegar o gelo, esquecera de deixar o isopor pronto, teria de pedir fiado mais uma vez à loja e escutar todas as piadas que ele mesmo usava com os clientes mais chegados. Ainda olhou o adesivo já rasgado, restando só um pedaço: Fiado? Só amanhã, o rasgo passava bem por aí.
Suspirou, mais uma vez grunhiu enquanto o ar saía do peito? Por que fazia isso consigo? Tentou abaixar para alongar um pouco a lombar e tocar os próprios pés, como ficava distante o caminho da cintura pra baixo, com certeza a morena consegue, porque mulher gostosa, mesmo que a gente não coma, pode fazer tudo que deseja, todo mundo deixa. Suspirou, chorando de dor, de dó, de calor, de caô, quanto traquejo lhe tirara a Vida.
Sonhava magro, como deveriam ser todos os chineses, a despeito do dragão:
– Ooooolha, o dragão chinês!!! Dragão Chinês, quem vai??? Lembrou que naquele dia também chorou, tendo esperneado mais do que o vendedor na praia, que parou para lhe escutar e rir, porque os pais pobres d’Issy lhe carregaram a bunda espalmada a tapas, que se espalharam até a boca, e o fizeram engolir o próprio choro.

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