Fernando Andrade entrevista o escritor Danilo Costa-Cobra Leite

Nheenga Literatura e Fechadura - Fernando Andrade entrevista o escritor  Danilo Costa-Cobra Leite
 

 

F.A.: Uma cidade é um elemento semiótico importante numa ficção? Até que ponto ela é um signo poroso onde tantos intertextos podem entrar e mover a história enredo de forma sinestésica e polissêmica? Como foi a sua?

D. C. L.: Fernando, tua pergunta é muito interessante, muito obrigado! Com certeza uma cidade é um elemento semiótico importante numa ficção, ela ordena espaços e relações, revela e cria possibilidades para os personagens. Um lugar é uma primeira limitação para a história que será contada; mas como impostura radical, é a primeira raiz daquela história. Uma dicção diferente, um sotaque, um hábito cultural fornecerá toda a sensação de normalidade para determinado personagem, ainda que ele seja um alienígena, ainda que lá fora haja o apocalipse (!) (aqui estou pensando nuns protagonistas do Camus ou do Ignácio de Loyola Brandão). A cidade é importante para dar contexto total à ficção, afetivo, linguístico, social, histórico, seja ela real ou nuperreal.

Vem bem ao caso nos lembrarmos de ficções em que as ruas escaneadas e mapeadas, se tornam assim tão famosas quanto as histórias contadas: a Londres de Dickens,a Paris de Victor Hugo; a Berlin de Döblin; Bagdá de Sherazade; a Moscou de Dostoievski; a Dublin de James Joyce, a cidade do Rio de Janeiro de Machado de Assis; Tóquio de Yasujiro Ozu; o “sertão” de Guimarães, a Terra Média de Tolkien, o inferno de Dante, Huxley; São Paulo do Rio Tamanduateí (me desculpa por escrever o nome por extenso da minha cidade natal) para Roberto Piva por exemplo. Os exemplos são muitos.

E, claro, a Buenos Aires de Borges.

O urbanismo, a arquitetura e a engenharia fornecem metáforas para pensar tais aspectos da vida, e isso ocorre, na minha opinião, porque a cidade é grande o suficiente para dar uma sensação no limite entre a grandeza do humano e a perda do indivíduo, ou seja antes que alguma ordem visível desapareça. Às vezes, no entanto, a cidade serve justamente para promover a perda de si, penso em ficções de Leminski (o Descartes em Recife), James Joyce, Boris Vian ou o “Macunaíma” do Mário.

A minha criação de Itá Anhangá originariamente é de 2003 (!), está baseada em memórias afetivas (de Mogi das Cruzes do Tietê, Spaolou do Tamanduateí, Lins e Cuiabá) relidas por: (1) uma vontade de olhar para o universo humano como um todo, sem precisar abandonar aquele banco de praça, de frente para o coreto daquela cidade onde outrora passou a fazenda, passou o trem, passou o rei, passou a indústria, passou o rolo compressor; (2) uma vontade de olhar para o próprio ato de escrever, mas sobretudo o de ler, como uma ferramenta para deixar de pé a memória. Esse atributo tão poderoso e perdido no nosso país, em especial na região do bandeirantismo, que louva piratas e condena as vítimas. O território brasileiro tem muitas riquezas, dentre as quais e sem dúvida em primeiro lugar estão as pessoas, as pessoas que tem histórias e que são desperdiçadas diariamente, há 500 anos. Não pode haver liberdade sem memória, porque a memória que somos capazes de narrar, de debater e de entender é a condição (limite radical) para a profundidade e densidade que encontramos no presente e em cada indivíduo.

Lembrando: esta é uma ficção que escrevi em 2003 e que revisei muitas vezes sem tentar mudar completamente seu espírito pueril e brincalhão, eu, como escritor hoje, estou muito diferente e essa ficção é um âmbar e um amuleto para mim.

 

F.A.: Os poemas iniciais apresentam uma intertextualidades com leituras. Como funcionam como elo com a narrativa em si? A leitura para você é jogo de assimilação- aglutinação de tropos narrativos?

D. C. L.: Mais uma pergunta muito bacana, Fernando, muito obrigado! Bem, a estrutura do livro “Dom Quixote” é composta por seções que tentei imitar: um pedido de autorização à publicação, uma sequencia de poemas escritos por personagens ficcionais ou ficcionados (o Cid Campeador), uma novela com pequenos textos dentro do texto, dentro da narrativa principal, algo que de maneira limitada tentei reproduzir nesse texto desde 2003 em sua versão original.

O mundo de Dom Quixote é paralelo à realidade no bom e no mau sentido. Por um lado, ele enxerga camadas espectrais do mundo, de maneira mais profunda, em virtude de suas referências perfeitamente internalizadas. Podemos dizer que Quixote é o leitor perfeito, aquele que penhora a mente, a alma e o corpo em nome do que a a arte da literatura (cavaleiresca, teológica, quase-filosófica) cria e problematiza. Seu olhar expande e renova os signos que estão em potência na Mancha cervantina, enclausurados, desgastados, embotados. Por outro lado, o Cavaleiro da Triste Figura permanentemente erra seu alvo, erra por um século ou dois, erra por um endereçamento muito pomposo ou rude, por uma dicção arcaica, erra por um reflexo ou por um momento de ensimesmamento, erra porque tenta entender como e o que de todo o universo se concentra na Mancha e na Península ficcional.

Os poemas não tem um papel unicamente à serviço da novela. Eles propõem um ethos, um fragmento de memória, de história, de leitura. Às vezes é só um refrão que precisa ser presente. É inevitável que, tentando costurar todas as raízes (poéticas) dessa Itá Anhangá, as costuras fiquem aparentes – minha túnica não é “inconsútil” como a de Jorge de Lima. Era algo que fiz quando criei a novela e decidi manter.

É inevitável que meus poemas soem como um comentário à literatura, um comentário que tem um valor próprio e intrínseco, espero, porém em diálogo com um elemento local, preciso, radical (uma cidade interiorana, uma pessoa, o leitor do livro). Eles são uma forma alegórica de assegurar a recepção da cidade de Itá Anhangá pelas musas, uma forma de prece e de benção próprias e necessárias para um neófito que tenta sua sorte na escrita.

Os contos, que chamo de “exercícios” são pequenos fragmentos da novela expandidos: um casal que viveu em Itá Anhangá, um personagem anos depois ou antes, um adolescente problemático da cidade, um escritor lutando para sobreviver (William Blake) e rascunhando um poema lembrado por Laura, a protagoniSta. Esses textos curtos são testemunhos de como minha escrita tem evoluído e de como uma cidade nuperreal (recentemente real), como Itá Anhangá, é capaz de gerar novas histórias imprevisíveis à primeira vista. Gosto dessa mistura de gêneros literários que é tão comum nos escritores antigos, embora disfarçada para a leitura superficial.

O desafio às divisões entre gêneros literários está presente desde meu primeiro livro “Paralithomaquia e outros poemas” (editado pelo Eduardo Lacerda, da Patuá, lançado em 2015), onde componho um “Canto” dantesco dramático em tercetos de dez sílabas (em contagem castelhana-italiana, que é algo de que gostaria de falar em outra oportunidade). Esse Canto reconta um monólogo em verso do próprio livro.

 

F.A.: Há uma interessante conversa entre cultura popular e cultura erudita pois a cidade em si, parece um lugar que festeja a música e cultura popular. Ao mesmo tempo envolve personagens que discutem poesia, autores consagrados do cânone literário. Com foi esta mediação entre o popular e o erudito?

D. C. L.: Fernando, vou oferecer aqui uma resposta que trata mais do meu desenvolvimento como pessoa primeiro e depois uma nota sobre o que penso ter feito literariamente em “Nhe’enga”.

Minha formação como leitor e fruidor de arte está nessa dobradiça entre o popular e o erudito, Fernando. Minha mãe, Elisete da Costa Nunes, é muitas coisas, pintora, ceramista, atriz, e também escritora de peças de teatro de bonecos; desde pequeno convivi com dois adultos que amavam muito a cultura popular brasileira e latino-americana. Meu pai, Airton Andrade Leite, é sociólogo, pedagogo, ator e diretor, de família nordestina, Andrade (como você Fernando!) do Crato no Sul do Ceará, muito ligado à cultura popular também. Os dois me introduziram muito cedo nesse universo dos saltimbancos, mamulengos, dos cordéis, dos polichinelos e arlequins, de caetanos, gilbertos, fellinis. Meu irmão mais velho, Caio Costa, também é um artista e criador de mundos, compositor, produtor, baterista e escritor (está com uma obra linda lançada este ano, chamada “Imperador Kot e o seu sonho de voar”, seu segundo livro). Os três são pessoas muito positivas e ativistas locais extremamente engajados. Mogi das Cruzes do Rio Tietê é uma colônia enorme nipônica também, a influência dessa cultura é palpável, a cidade está enfiada em um Vale lindo, com um belo patrimônio urbanístico, ambiental e histórico consumido pouco a pouco pelo dinheiro que transborda da Capital.

A cultura erudita, no meu caso, chegou um pouco por essa sensibilidade que foi se desenvolvendo e um pouco por novos ambientes (universidade, amigos, namoros etc.) que entraram na minha vida: literatura chilena, argentina, inglesa, cinema.

Agora, para falar do diálogo entre popular e erudito propriamente, de mediação, de tradução, em uma palavra, a conversa aqui é difícil. Creio que existe um ruído permanente entre as muitas culturas populares do território brasileiro e o que se considera o “cânone” ocidental (erudito, elitista, europeu e estadunidense). Não me preocupei especificamente, neste livro, em fazer os encaixes e traduções funcionarem absolutamente; aqui fui mais antropófago. Por exemplo, a peça de teatro de bonecos no meio da novela é uma versão de uma comédia japonesa Kyôgen chamada “O ladrão de caquis”; o poema de Drummond e de Neruda declamados durante a festa junina são tudo menos poemas pensados de festejo (simposiais, alegres, satíricos). Gosto do formato de teatro de bonecos ou de máscaras (como o nipônico).

As cenas da novela, e de certo modo dos contos depois, tem um beat sempre muito introspectivo, largado. Esse choro, essa moda-de-viola e esse blues acabam invadindo o próprio narrador em certo ponto. Existe um protagonista masculino e uma feminina, o território e os acontecimentos estão ordenados para que suas mentes se toquem sem se misturar.

 

F.A.: Há um desenvolvimento do perfil do narrador fluido em seu livro. Ele seria uma narrador que sai da página de um livro para ser alguém que escuta o mundo em todo complexo algoritmo auditivo? Fico imaginando nas tramas de Shakespeare onde o segredo tinha uma função quase órfica. Fala-te aos meus ouvidos para abarcar o universo.

D. C. L.: Mais uma ótima pergunta. Em relação ao narrador, mantive o tom original do projeto, revisando a língua, dando um pouco mais de perspectiva à “ação” do narrador, o que aparece no conto chamado “Exercício 2”. O narrador tambéms e torna pouco a pouco mais um recurso dramático, que tenta atravessar a “parede” da folha de papel. Em certo ponto vemos Lúcia descrever suas voz, precisamos de imaginação para entender o que pode ter de tão especial naquela voz. Ele, no entanto, não é um ator, não tem uma cara, está sempre nessa penumbra ou, como você disse, ele faz parte do ritual dos mistérios, que talvez veicule uma verdade, uma verdade “órfica” sobre a origem do universo, do primeiro homem, do verdadeiro panteão.

Ou, como o próprio Jacyntho, que escreveu as belas orelhas do livro (e fico muito feliz com o fato de as orelhas descenderem dele), existe dentro do narrador o vazio, o vazio que o torna adequado para o blues e o beat da novela e dos contos. Não há resolução possível para a história de amor proposta ou para a quebra da parede entre narrador e leitor.

É um pouco engodo, tristeza e equívoco, mas equívoco, tristeza e engodo que tornam a vivência humana mais bonita.

 


F.A.: Você acha que toda relação de enamoramento é um pouco uma relação literária, no sentido da projeção leitor – livro, desejo, ausência de corpo (imaginação)?

D. C. L.: Não sei se sou capaz de responder a pergunta tal como você espera que ela seja respondida, Fernando, mas vou tentar. Todo enamoramento é uma relação literária, acho que sim, considerando que existe uma lacuna entre enamoramento e desenlace (positivo ou não) e que muita projeção, expectativa e fabulação ocorrem no meio do caminho. De certo modo o amor educa a mente para buscar o melhor, dentro de si e no outro, e em geral esses amores podem ser cultivados continuamente, independente do desenlace desse enamoramento. Ainda que um relacionamento ocorra, uma separação, em relação às pessoas nos tornamos capazes de lhes desejar algo de bom. Agora, se de fato desejamos ou não o bem, depende da atitude de cada um. É difícil desejar o bem das pessoas o tempo todo, o exemplo do Brasil está aí e não me deixa mentir.

Mas a tua visão é bem frutífera sobre o que ocorre em “Nhe’enga a more quixotesco”, pois de certo modo lembra um aspecto muito comentado sobre o próprio Quixote, o do amor platônico – pobre Platão! – e que sem dúvida está representado na novela. Rodolfo tenta compensar sua falta de dotes com leitura – isso é bom! – para tentar conquistar uma pessoa; Laura, em virtude da criação, tem sua relação com o mundo mediada pela literatura, e esse convívio com tais referências acabam por demonizar até seus sonhos. A única coisa que modifiquei em relação ao projeto original foi a protagonista feminina. Não ficou como eu escreveria hoje, mas estou feliz por ter me tornado mais empático com a condição das mulheres e de ter tentado ativamente escrever uma personagem com muitas facetas, complexa. É uma jornada de empatia.

Meus próximos projetos incluem livros de poesias (“O caminho das aves”, uma coletânea de haikus expandidos; “O gênero de Khármides” uma triptransgênero; “Nenhuma chuva em vão”, uma ficção que se passa no século passado).

Queria muito, por último, agradecer a todas as pessoas envolvidas neste projeto, a Giovana Machado (revisora), ao Raul, Sálvio, Marcos Pamplona e Daniel (editores da Kotter e escritores), ao Guilherme Schneider Gondim pela apresentação do livro, ao Jacyntho pelas orelhas e ao Mário Sérgio de Moraes pela quarta capa (grande poeta e mestre) e a ti pelas generosas palavras da resenha e pelas excelentes perguntas!

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This Article Has 1 Comment
  1. Danilo Leite Reply

    Valeu pela acolhida no blog! Estou muito feliz com essa nossa conversa!
    Abraço
    Danilo da Costa-Cobra Leite

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