Tarde demais | conto de Geraldo Lima

geraldo lima literatura e fechadura - Tarde demais | conto de Geraldo Lima

créditos: Cicero Bezerra

GERALDO LIMA é escritor, dramaturgo e roteirista. É autor dos livros: A noite dos vagalumes (contos, FCDF, 1998, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária), Baque (conto, LGE Editora, 2004), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora, 2004), UM (romance, LGE Editora, 2009), Trinta gatos e um cão envenenado (teatro, Ponteio Edições, 2011), Tesselário (minicontos, Selo 3×4, 2011), Uma mulher à beira do caminho (contos, Editora Patuá, 2017). Tem textos publicados em jornais e suplementos literários (Rascunho, Correio das Artes, Suplemento Literário de Minas Gerais, Correio Braziliense, Jornal Opção e Jornal RelevO), revistas impressas (Oroboro, Polichinelo, Traços etc) e sites, blogs, revistas eletrônicas (O’Bule, Gueto, InComunidade, Literatura & Fechadura, Nóstres, Diversos Afins, Germina – Revista de Literatura & Arte etc.). É autor do roteiro do longa de ficção O colar de Coralina (exibido em várias salas de cinema em 2018) e da peça de teatro Trinta gatos e um cão envenenado (encenada em 2016 em Brasília). Contato: gerallimma@gmail.com.

 

 

TARDE DEMAIS 

por  Geraldo Lima

Chegaram, meteram o pé na porta de casa e entram sem pedir licença.

O susto foi enorme. O medo drenou o sangue das veias e um princípio de pânico ameaçou desestabilizar a ordem do recinto. Melhor ficar todo mundo quieto, sem tentar nenhuma gracinha.

Onde estava a ordem judicial autorizando aquela invasão? Um deles, corpulento e quase albino, cuspiu de lado e apontou para a minha testa a “ordem judicial”.

Aquilo era superior a qualquer papel com carimbo e assinatura de juiz.
Não ousei contestar. Só um insensato ousaria. Nessas horas, há que se reconhecer a validade dos argumentos de quem detém o poder das armas. E aqueles homens estavam armados até os dentes. Nervosos e armados. Via-se logo que não eram policiais. Eram, sim, uma outra espécie de gente, de bicho, de verme.

Minha mãe achou de suplicar que não fizessem nada de mal com a gente, que a gente era uma família de bem, que pegassem o que quisessem, mas isso só azedou ainda mais o ânimo dos caras. O quase albino meteu o cano do revólver dentro da boca da minha mãe e disse que não eram ladrões e sabiam muito bem o que estavam procurando ali, que ela ficasse de boca fechada, mais uma palavra e te mando pro inferno, sua bruxa velha!

Eu podia suportar qualquer coisa, menos aquilo. Meu sangue ferveu e por pouco não saltei sobre aquele desgraçado. O sujeito, como se tivesse lido os meus pensamentos, voltou o cano da arma na minha direção e perguntou:

–Tem algum herói aqui?

Não, não tinha. Olhei pra minha mãe com olhar repreensivo, e acho que ela entendeu que o melhor era ficar calada.

Mas até quando duraria aquela situação? O que eles queriam com a gente? Por que toda aquela brutalidade se ninguém ali conhecia eles?

Como se tivesse escutado as minhas indagações, o chefe do grupo, o albino corpulento, avançou três passos e parou diante do meu irmão mais novo.

Num golpe só, entendi tudo, e meu coração ameaçou parar de bombear o sangue para o corpo todo. Num golpe só, entendemos o significado daquele gesto, e o mundo fragmentou-se à nossa volta. Minha irmã caiu num choro convulso e espremido. Pelo amor de Deus, moço, não faça isso, ouvi a voz suplicante da minha mãe.

Mas o homem já não ouvia nenhuma súplica. O que ele buscava, com ódio e determinação, estava ali, acuado diante dos seus olhos, encolhido no canto, a palidez desbotando a pele negra, o corpo tremendo feito uma vara verde.

Eh, meu irmão, de nada adiantaram nossos conselhos para não se meter com esse tipo de gente. Olha só que merda você fez, menino!

Ele havia lido nos meus olhos essas palavras de angústia e tristeza?
Agora, que já não havia mais tempo nem razão de ser, talvez estivesse esperando ouvir nossa voz insistente e preocupada. Mas já era tarde demais. O homem recuou uns cinco passos e só com um movimento de cabeça deu a ordem aos outros dois.

Minha mãe desabou como se morresse junto com o filho.

[Do meu livro de contos Uma mulher à beira do caminho, Editora Patuá, 2017]

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This Article Has 3 Comments
  1. Wilson Lima Reply

    Excelente conto. Bem propício às épocas atuais.

  2. Chico Pascoal Reply

    Tenso. Forte. Bem trabalhado.
    Parabéns, amigo Geraldo.

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