Jean Narciso Bispo Moura entrevista a poeta Mariana Marino

Mariana Marino 2 - Jean Narciso Bispo Moura entrevista a poeta Mariana Marino

Mariana Marino é poeta e doutoranda em Estudos Literários pela UFPR. “Peito aberto até a garganta” é seu livro de estréia e foi publicado pela editora Urutau em março de 2020

 

 

 

peito até a garganta literatura e fechadura - Jean Narciso Bispo Moura entrevista a poeta Mariana Marino

 

 

 

J.N.B.M.:  Quem é Mariana Marino?

No momento, alguém que sente muito frio, e que tem tentado transformar as fúrias, as raivas, em algos que toda a gente que quer acabar com esse país odeia: dançar, escrever, gozar, viver as próprias verdades no corpo (pensando muito no poema da Tatiana Nascimento).

 

J.N. B. M.:  Fale um pouco do percurso da obra, do processo de composição à seleção de textos.

M.M.: Peito aberto até a garganta começou a aparecer pra mim num momento de grande abertura pras possibilidades de escrita, de abertura pra leituras de poesia contemporânea, especialmente textos escritos por mulheres. Isso foi em 2017, mais ou menos e, ao final de 2018, comecei a organizar o que eu tinha escrito nesse período, mexer, cortar, enfim, editar, já pensando num projeto de livro. Peito aberto foi dividido em três partes depois da leitura de alguns dos poemas por outras pessoas, especialmente as que integram a Membrana, nossa grupa de escritoras e escritores aqui de Curitiba. Comecei a frequentar as reuniões no segundo semestre de 2018, e muitas das leituras ali, compartilhadas, me ajudaram a colocar uma ordem no material. Digo que o processo foi muito coletivo, passou pela leitura de muitas pessoas próximas antes de, finalmente, o livro ser enviado para a editora Urutau, em março de 2019, num edital para escritorxs residentes em Curitiba.

 

J.N.B.M.: No livro Peito aberto até a garganta há uma criança do passado, imaginária ou real que viveu uma dor silenciosa. Esta menina existiu? Fale um pouco disso.

M.M.: Sim, essa menina existiu e não existiu, ao mesmo tempo. Ela fui eu, especificamente aos 5 e 7 anos, duas ocasiões em que enfrentei cirurgias cardíacas. No entanto, como lido com memórias de infância, muito borradas pela distância, os poemas acabam vindo a partir desses exercícios de memória, que já é atravessada pela passagem do tempo, pelas invenções sobre os acontecimentos, pela retomada de sentimentos que não necessariamente foram vividos, sentidos ou que, se foram, aconteceram com outra intensidade, que já não me chega. Acho que é assim que se mistura o que foi experienciado com pinceladas ficcionais: a gente pode mentir ao escrever, como bem fala a poeta Natasha Félix (“O que me interessa é a função da mentira dentro da linguagem”, em entrevista a Mulheres que escrevem), mesmo quando a motivação para a escrita de um poema tenha partido de uma experiência íntima. Ainda acho que preciso mentir mais.

 

J.N.B.M.: No poema de abertura intitulado “antes do cânone”, você apresenta a história e a passagem da oralidade à escrita. Retrata uma linha cultural desde os primórdios projetando-se na atualidade. Como você vê o tratamento do cânone em relação à literatura de autoria feminina no contexto brasileiro? É algo que lhe afeta?

M.M.: Durante a minha formação em Letras, eu li pouquíssimas mulheres (aqui, incluindo também teoria). Eu só me dei conta da problemática anos depois da minha entrada na universidade, quando um amigo, Guilherme Souza (que inclusive lê muita literatura de autoria de mulheres), começou a questionar o nosso currículo da graduação. Na mesma época, eu comecei a frequentar o Leia Mulheres Curitiba, mediado pela Emanuela Siqueira, que pesquisa na área da crítica literária feminista. Em 2018, a Emanuela, junto com a Julia Raiz, poeta e também pesquisadora, ofereceram um curso sobre crítica literária feminista na UFPR. Uma das leituras sugeridas para o andamento das discussões foi Quando da morte acordamos: a escrita como re-visão, da Adrienne Rich, que mudou drasticamente a minha visão sobre o cânone, as escolhas de quem deve ser lido, quem deve ser deixada de lado. A partir daquele momento, eu tenho re-visado as minhas leituras, lido muitas mulheres, escolhido incorporar, também, mais teoria escrita por mulheres à minha pesquisa, então, sim, é algo que afeta diretamente a minha produção escrita mais recente.

 

J.N.B.M.: No poema antes do em seguida você apresenta um diagnóstico recheado de terminologia médica e na segunda estrofe passa para uma situação de suposta calmaria. Como foi retomar na memória estes dois mundos, sair da tempestade para bonança?

M.M.: Acredito que o que tentei evocar aqui foi uma força de infância.
Em como eu percebi, desde pequena, que tinha uma vontade absurda de viver. Penso que essa vontade foi despertada também por todas as complicações do corpo, visto que houve uma tentativa de elaboração da morte, da própria, ainda muito cedo. antes do em seguida tenta captar isso, essa faísca de querer permanecer apesar de todas as limitações. Isso talvez não fique tão explícito, visto que o poema não foi escrito em primeira pessoa. O que prevaleceu, no entanto, foi a vontade de finalizar a primeira parte do livro de maneira mais leve, mas não menos cortante: por isso, a escolha do formato mais rígido, um laudo médico, com seu excesso de linguagem médica específica.

 

J.N.B.M.: As mulheres apresentadas nos seus poemas são fortes. De início você apresenta uma dedicatória à sua mãe. Conte como foi desvelar a força feminina e familiar na sua escrita? Esta força da mulher, principalmente a materna, tem uma ação motora, fazendo testificar a experiência primeira de insistência pela vida?

M.M.: O que me fez querer escrever sobre as mulheres da minha família foi o diagnóstico de Alzheimer da minha avó materna, bastante citada na segunda parte de Peito aberto até a garganta. Quando me dei conta de que muitas histórias vividas por ela seriam perdidas para sempre, comecei a me interessar mais por elas, a me aproximar também das histórias da minha mãe, principalmente as de juventude, que eu julguei conhecer tão pouco. Esse olhar descentralizado para as figuras de avó e de mãe, respectivamente, e focado em compreender suas vivências como mulheres que experienciaram a juventude em diferentes épocas, foi bastante importante para me dar conta de que, de alguma forma, essas histórias também são minhas, e conhecer tão pouco delas, ao que parece, também faz com que eu desconheça as minhas próprias. Não saberia dizer se minha mãe é uma personagem central, apesar de algumas menções mais diretas a ela em com sangue de sêmele, segunda parte do livro, mas com certeza foi ela, também, além de minha avó, a despertar essa curiosidade em mim quando, um dia, e de maneira bem despretensiosa, começou a me contar suas dificuldades na infância e adolescência, muitas delas advindas do corpo: como colocá-lo no mundo, tendo sido ela uma menina tão tímida, criada dentro dos costumes rígidos da tradição patriarcal? Como evitar que o desejo se transformasse em culpa? Como separar a vontade genuína pelas coisas de uma obrigatoriedade imposta pelos ditos papeis sociais?

 

J.N.B.M.: Em um dos seus poemas você fala sobre o senhor Gama que solitário vê a morte em frente à TV. Este texto é um dos mais bonitos do livro. Qual a sua relação com a perda vertida em sensação de finitude?

M.M.: Sempre tive medo de morrer e sentir muita dor. Esse é ainda um pensamento que me ronda, às vezes com mais intensidade. Tendo experimentado muito cedo a possibilidade da morte, acho que esse medo de sentir dor em excesso no momento de partir ainda é um resquício infantil. Tento pensar, então, nas descrições de morte, quando elas aparecem vez ou outra nos poemas, como sendo processos rápidos e quase indolores, como esse, vivido pelo seu Gama. A minha avó paterna, por exemplo, morreu dormindo. Eu queria poder morrer assim, dormindo. Sonhando, de preferência.

 

Há um aparente jogo de espelhos em alguns dos seus poemas. O que vemos de início se transfigura a posteriori. Como foi falar do corpo na construção de sua poética? Esta temática sempre ocupou o seu pensamento e escrita?

M.M.:  Como a poeta Julia Raiz, prefaciadora do livro, definiu bem, Peito aberto até a garganta é um corpo-livro. Ao longo dos poemas, as palavras “corpo” e “abandono” aparecem 17 vezes.
Então, quando trato de corpo, aqui, são esses limitados, dissidentes, abandonados, considerados desimportantes. Acho que, cada vez mais, essas percepções sobre os corpos, as corpas, vão tomando um lugar definitivo na construção dos poemas para além de Peito aberto, visto que tenho estudado muito sobre decolonialidade e feminismos interseccionais.
Como não pensar em corpos, corpas, morando no Brasil, especialmente neste momento histórico, em meio a uma pandemia, alargada por um projeto governamental que quer dar continuidade, a todo custo, à chamada colonialidade do poder?

 

Ana Cristina Cesar aparece nas epígrafes de cada seção do livro. Ela dialoga com o corpo do seu texto em alguma temática que urge na contemporaneidade?

M.M.: A Angélica Freitas publicou recentemente suas Canções de atormentar e, ali, há um poema dedicado a Ana C. Em uma das partes, lê-se: porque até ana c. eu não sabia que se podia/ escrever assim e eu queria escrever. Acredito que seja por isso que ela está presente nas epígrafes de Peito aberto até a garganta, na abertura de cada sessão, como que evocando uma vontade de escrever de um jeito próprio, não tentando imitar ninguém, apesar de estarem presentes algumas das minhas referências de leitura. Talvez, mais do que tratar de uma temática em específico, haja uma movimentação nas escritas: como contar (e recontar) histórias utilizando outros modos de dizer, diversos outros modos de sentir, como colocar o corpo pra jogo?

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