F.A.: De que território vem imigram meus pássaros? Pelo manto da voz parece vir não tanto de um lugar físico, mas sim plenamente poético, onde as aves tem a leveza de uma metáfora. Como foi deslocar as melodias deste livro tão bonito em voo de liberdade plena?
L.N.: Há uma canção de Dona Ivone Lara onde ela diz: “O que trago dentro de mim preciso revelar. Eu solto um mundo de tristeza que a vida me dá, me exponho a tanta emoção. Nasci para sonhar e cantar”. Sendo assim, acredito que em algum lugar da minha infância no Acre, onde eu corria para me molhar na chuva, nas descobertas mais simples e universais desse território nascente infantil, onde não temos pesos, apenas asas que levavam longe, eu já estava escrevendo a minha poesia futura. A chuva quando vinha era apenas minha, e eu a sentia morna. Escrever é sentir como sua toda a natureza. Eu não tinha apressamentos, para crescer, para viver, apenas acordava e seguia. E, apesar de tanta avidez por escrever, de algum modo precisava sentir o tempo. Me alumbrar. E os pássaros poderia então soprar todas as histórias do mundo na minha imaginação.
F.A: Você faz referências muito sutis a sua formação artística citando artistas que você leu e afetuou em seu imaginário afetivo. Como costurar esta leituras em seu livro?
L.N.:Tive um pai velho. Aliás, amo essa palavra e repudio o termo idoso. Velho é tempo, são nossas camadas de vida. E quando era adolescente, por cuidados com ele ficava em casa. E dentro dessa casa havia um mundo imenso para mim. Construí todos meus castelos, e filmes, livros e música foram se fixando em mim. Quando se convive com a solidão, dentro dela criamos amigos, imagens, fantasiamos. Sofremos igualmente. E quem melhor do que as escritoras e escritores para nos entregar seus personagens, caminhos. O ritmo e poesia da música que acompanham as emoções, tudo isso é companhia! E todos eles tornaram-se meus melhores amigos por muitos anos. Por isso foi tão natural incluir seus nomes no meu livro. Como reverência aos anos que eles também me deram.
F.A.: Você trabalha sobre uma ancestralidade que finca o terreno no mito. Como é este solo antropológico para falar de temas com respeito à tradição dos povos, origens, famílias? Se quiser falar de seus outros livros.
L.N.: Viemos nesse mundo para florescer, expandir nosso grão. O grão busca por um terreno acolhedor. Muitas vezes nossos grãos não recebem o devido cuidado, são estrangeiros ou indesejados. Crescem um pouco. Daí um vento surge, sopra essas sementes longe, e florescem. Digo isso porque você sabe que eu fui feita no candomblé. Carrego comigo além das memórias maternas e paternas, outras que me foram entregues como um presente. Como se estivessem esperando encontrar um bom terreno para acolher. E certamente essas novas memórias dos meus sentimentos e vivência nas tradições dos povos de terreiro estão e estarão em meus trabalhos, no que escrevo e pinto.
F.A.: Sua linguagem parece se hibridizar em alguns gêneros como a ficção, memórias, diários. Como se dá esta mistura entre fronteiras literárias, onde chão não é demarcação de escritura narrativa e poética. Fale disso.
L.N.: Sou movimento e sou água. Algumas vezes transcorro imersa e outras vezes não hesito em mudar ou romper. A arte não pode se limitar. É da sua natureza ousar . Reconhecer o medo até do fracasso e seguir em frente. Parado se morre. Parado, só se for para ouvir uma boa música ou contemplar a pessoa amada. Eu risco a pemba e parto para cruzar essas fronteiras. Não digo que é algo prosaico ou fácil. Nunca é fácil quando se experimenta novos territórios. Mas eu sou atravessada por tudo o que veio antes de mim, e pelas experiências presentes. E para mim nem o tempo é uma barreira, vou e volto com bastante comodidade entre séculos. Uma mulher do século XIX conversa comigo, e sem dúvida ela se reconhece na campesina dos dias de hoje ou na artista contemporânea . A humanidade converge muitas vezes em pontos comuns sobre questões universais, tanto para o bem, como para o mal. E a escriba vai ouvindo as histórias e as recontando.
F.A.: Sua arte também se espraia pelas imagens. Você é também documentarista e ilustradora. Fale um pouco destas experiências estéticas?
L.N.: Volto na infância. Volto a esse ponto crucial de nossas vidas. O ponto onde somos futuros lascados ou seres inteiriços. E nela me vejo pintando feliz pelas paredes de casa. Vejo a criança que pegava uma caixinha de pregos e os colocava em cima de um tabuleiro de damas e criava cidades e pessoas. Com pregos. Vejo a menina que tinha vergonha e falava baixinho e a mesma que pegava as fantasias e subia nos sofás e bancava a chacrete de sábado à tarde. Vejo que toda vivacidade e curiosidade, ainda bem, não ficaram lascadas. Foram emudecidas por um tempo, mas emergiram no tempo apropriado. Sabe o amor? É mais gostoso quando acontece sem pedir, sem forçar. Aconteceu a minha pintura, o desejo de documentar com imagens, a necessidade de contar sempre uma história. De chegar devagarinho no terreiro, ouvir o assobio dos pássaros noturnos. De poder reconhecer que a maturidade me trouxe as rugas mais lindas do meu corpo, que são como as escritas das minhas histórias e poesias. Não se nasce para os desejos dos outros, se nasce para voltar a ser e se reconhecer.
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