Aprendiz
Quero teu corpo como a um livro que eu escreva não com as palavras que nasçam em mim, mas com as súplicas dos anos em que deixamos de sonhar; talvez não queira escrevê-lo, mas lê-lo em segredo de criança, ouvir-lhe as entrelinhas sussurradas, desvendar-lhe os versos nas pontas dos meus dedos e pacientemente participar de uma ode a dois na qual tu gemas versos de indelicadezas sensuais e meus ais pronunciem o desejo de mais uma página.
Quero escrever-te como a um jornal diário dizendo-te além do amor todas as paixões em seções inesperadas, paixões escritas e inscritas na imensidão que olhas perdida quando a pontuação evidencia pausas e respirações, quando os parágrafos altercam não ideias, mas a cidadela sitiada entre os montes da minha inspiração.
Preciso, também, que me escrevas no vão retido tênue da alma ave migratória que fazes voar todo mês, nave-mãe de sóis criados à sorte dos dizeres descabidos, poema em si despido de palavras exatas, incontida senhora das horas em que me amarras à sombra de tuas coxas poderosas e me sufoca com teus sufixos sulcados às minhas costas. Então o recuo ante o final; mais um capítulo ao tantra, mais um paraíso de algodão amarfanhado pelas mãos, mais um tremor espalhando letras pelo chão.
Por entre as frestas ouço recortes
A memória das vazantes
Então fico a ver navios naufragados
tão mais velozmente
que os meus sentidos consigam buscar num sumiço de horizonte distante
(arregalo olhos de solidão e calo diante do imenso fosso esverdeado).
Semblantes pouco críveis
desesperançados de rugas e sonhos em pedaços acumulam-se ao meu lado também fixados na
profundidade que se alarga e esgarça mais e mais o sentido que dávamos às estórias antes dessa
precipitação.
Precipito-me encarando o próprio Poseidon e seus amores em descalabro e só depois de arrancado da
areia e arremessado de volta à realidade é que percebo Cila e Caribdes abocanhando das pedras os poucos
e tristes pescadores de almas.
Esqueço a luz adormecida com a tarde
viro-me deixando o livro empoeirado cair no piso de tacos tão velhos como sonoros e na linha tu insistes
em perguntar por que durmo tanto o dia todo e tudo o que digo é que só assim lanço garrafas ao mar
só assim pressinto o que de mim se afoga na falta de ar que do outro lado respiras.
Sergio Rocha, paulistano dos altos de Santana, escritor, poeta, jornalista (de)formado pela Filosofia, mas principalmente pai da Mariana, Fernanda, Giovana e avô do Ravi. Tem dois livros publicados, “Terceiro fragmento”, J. Andrade Gráfica e Editora, 2012, Aracaju/Se e “Um poema depois da chuva”, Rusvel-Triver Studio e Editora, 2018, São Paulo/SP. Vem participando de várias antologias impressas e virtuais. Organiza o Sarau Santa Sede, ministra oficinas de criação literária e é editor na Casa Editorial Livrará.
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