por Ranieri Carli
Em 2017, temos a publicação da coletânea de poesias João & Maria: dúplice coroa de sonetos fúnebres, de autoria de Leonardo Antunes. Dada a sua qualidade ímpar, podemos assegurar sem receio que a vinda do livro ao público é um fenômeno de alto relevo para a cultura poética contemporânea em nossas terras. Com João & Maria, Antunes se apresenta como um poeta a ser lido, a ser acompanhado em suas futuras produções, a ser estudado pelos interessados na grande arte que arduamente resiste entre nós.
Com o próprio subtítulo diz, a coletânea é composta por sonetos que formam duas coroas. A coroa é o arranjo em que os sonetos se intercalam entre si, sendo que o verso que termina um soneto irá necessariamente começar o próximo, e assim sucessivamente. O último verso do soneto anterior será o primeiro do posterior, até que temos o décimo-quinto soneto a concluir a coroa. Antunes construiu os seus sonetos com versos decassílabos, com a acentuação marcada na sexta sílaba. A estrutura visivelmente complexa das duas coroas de sonetos explica bastante a resposta ofertada pelo poeta numa entrevista, segundo a qual “os meus desejos [de Leonardo Antunes], para livros que não existem, são todos baseados em formas ousadas e difíceis de serem levadas a cabo”¹. A ousadia da forma e a complexidade de sua execução não apenas estão presentes em João & Maria, como foram levadas a cabo com a destreza de um autêntico artífice do verso.
Na obra de Antunes, o que se lê não é uma simples restauração estéril do soneto enquanto forma sem conteúdo, ossatura sem nervos e músculos. João & Maria detém os pés rigorosamente fincados no solo da realidade histórica; é realista, debruçando-se sobre a vida das camadas populares da maneira como distingue corretamente Suzana Pagot² :
São histórias de vidas construídas como uma espécie de espelhamento, visto que refletem a violência e a solidão cotidianas como também os projetos de vida ceifados pela ignorância, pelo medo, pelas limitações de oportunidades que permeiam as relações humanas imersas na contemporaneidade, traduzindo as vicissitudes de seu tempo.
É importante ressaltar o que Pagot chama de “vicissitudes de seu tempo”, algo que confere o caráter realista à literatura de Antunes. Há uma coroa de sonetos a propósito de João, e outra, de Maria. Ambos são trabalhadores que experimentam relações que os levam João ao suicídio, e Maria, à morte por linchamento. Daí a adjetivação de “fúnebres” que Antunes concedeu aos sonetos. Nesse sentido, nos versos de João & Maria estampa-se uma tragédia. O complexo da forma e do conteúdo de uma tragédia é precisamente o que nos conduz ao abalo em nossa subjetividade que consiste na catarse, segundo as teses de Lukács (cf. 1966, v. 2, p. 308). E, por certo, a obra de Antunes é um veículo apropriado para nos fazer ascender à catarse, à purificação moral característica do fenômeno. Uma tragédia acerca da vida socialmente compartilhada por todos nós na particularidade histórica atual da nação.
1 ANTUNES, Leonardo. Como escreve Leonardo Antunes. Disponível em ANTUNES, Leonardo. Como escreve Leonardo Antunes. Disponível em https://comoeuescrevo.com/leonardo-antunes/. Acesso em 07/09/2019.
2 PAGOT, Suzana. Resenha de João & Maria: dúplice coroa de sonetos fúnebres. Disponível em
https://www.seer.ufrgs.br/brasilbrazil/article/viewFile/84036/48508. Acesso em 07/09/2019..
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De João, sabemos logo de pronto: “Ninguém soube o motivo ou a razão/ No dia em que João chegou cansado,/ Depois de um turno duplo e um baseado,/ Trazendo um trinta-e-oito em sua mão” (ANTUNES, 2017, p. 15). João comete o suicídio em casa depois de um dia de trabalho desgastante, deixando seus familiares desconcertados, uma vez que não se espera uma atitude de desregramento extremo como essa de um cristão como João. A partir daí, os leitores são confrontados com elementos da vida de João de Sá Clemente: vinte e dois anos, que trabalhava como vigilante, de boa família, detentor das boas maneiras típicas de um operário apassivado pelas circunstâncias, cuja gagueira preocupava a mãe a ponto de levá-la a fazer promessas para que os santos católicos lhe corrigissem a fala. Era, assim, “um moço sempre tão bem-comportado” (ANTUNES, 2017, p. 25). De fato, “Que quisesse voar sobre o oceano,/ Viver, amar, gritar como um demente,/ Não era o que esperassem de João” (ANTUNES, 2017, p. 23).
Adiante, somos chamados a ingressar nas discussões dos membros da igreja que João frequentava; um debate sobre a natureza pecaminosa de sua decisão final, que culmina inclusive com a participação de um emissário do Vaticano. Na coroa de João, os sonetos de X a XII expressam o depoimento de sua mãe ao representante do Papa e formam uma sequência belíssima, que deve ser lida e relida, graças à sua forma exemplar. O soneto XII termina com o terceto: “Chorando sobre uma fotografia/ Do filho, após o seu depoimento,/ Cravou-a a própria testa, penitente” (ANTUNES, 2017, p. 39). Ao cabo, conclui-se que João não havia cometido um pecado ao suicidar-se, tendo em vista que a sua história de miséria e sofrimento representou por si só o que na vida significa efetivamente a morte: “Tornou-se assim um símbolo de tudo/ Que em vida lhe configurara a morte,/ Ainda que morresse por opção” (ANTUNES, 2017, p. 43).
Do outro personagem, sabemos que “Maria trabalhava todo dia/ Num açougue nos fundos do mercado,/ Cortando bifes, embalando o gado,/ Pondo em bandejas a mercadoria” (ANTUNES, 2017, p. 47). A escolha de um açougue para que seja o local de trabalho de Maria não é gratuito. Como em Santa Joana dos Matadouros, de Brecht, aquele espaço cria um ambiente molhado em sangue dos animais que são preparados à base dos cortes das facas afiadas, que sujam de vermelho os aventais brancos dos trabalhadores. No caso de Maria, a sua coroa é aberta com o soneto que nos conta prontamente que seu destino termina com o seu marido descobrindo-a nos braços de outro; a cena lhe desperta a fúria que desemboca no espancamento de Maria e seu linchamento em plena rua: “Quebrou-lhe três costelas e dois dentes/ Antes que ele fugisse pela escada./ Depois linchou Maria em plena rua” (ANTUNES, 2017, p. 47).
Conhecemos, então, Maria: operária que havia dado a luz a três filhos, possuía uma mãe doente, morava num barraco alugado, vítima de assédio do seu gerente, “tratada como escrava” (ANTUNES, 2017, p. 51); furtava carnes do açougue para vendê-las posteriormente, a fim de aumentar a renda doméstica. É a típica experiência ordinária das classes populares que habitam os bairros operários de uma metrópole moderna.
Maria vivia “entre os cadáveres e a mais-valia”, como diz um verso construído com o encanto que é comum à arte de Antunes. Depois do terceiro filho, Maria viu-se obrigada a prostituir-se para prover o tão rarefeito sustento: “Secretamente, dentro de um sobrado,/ Cliente após cliente satisfeito/ Tomava o que quisesse, do seu jeito,/ Do corpo de Maria, debruçado.” (ANTUNES, 2017, p. 59).
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Certo dia, os seus furtos foram descobertos pelo gerente, que condicionou o seu silêncio à entrega de Maria às suas vontades. Foi nos braços do gerente que o marido de Maria a encontrou: “Nos braços de outro sobre a cama, nua,/ Maria congelou por um momento/ Ao ver o esposo entrar, sanguinolento/ Por calculá-la em plena falcatrua” (ANTUNES, 2017, p. 69). Ao término do desafortunado encontro de Maria com seu marido, temos o seu linchamento na rua diante do público sedento de vingança, como explicam os dois tercetos do soneto XIII de sua coroa: “Tomando seu pescoço na mão bruta,/ O marido a exibia à vizinhança,/ Gritando a todos a desgraça sua.// À aclamação de ‘morte à prostituta!’,/ Jogou ao meio-fio sua aliança,/ Depois linchou Maria em plena rua” (ANTUNES, 2017, p. 73). Por ironia do destino, Maria termina como as carnes que eram objeto de seu trabalho: “seu corpo retalhado em carne crua” (ANTUNES, 2017, p. 75).
É, com efeito, a particularidade a categoria central da literatura de Antunes.
Estamos diante de características da personalidade de João e de Maria, sem que, no entanto, os poemas se fixem nelas, tratando-os como subjetividades alheias à vida social em que se inserem. Ao mesmo tempo, a universalidade da condição social de ambos não é desprovida de raízes na realidade histórica, o que faz com que seus destinos concretos no interior das coroas não se descolem do solo. Somos levados das singularidades de João e Maria, até a universalidade de sua condição social; os poemas transitam entre o singular e o universal, tendo o particular como porto seguro. Nada mais eficaz para coagular um tempo na arte, um aqui e agora situado historicamente.
Guto Leite está com a razão quando, recorrendo a Bakhtin, alega que é possível afirmar que as coroas de sonetos escritas por Antunes possuem uma “alma de romance”³. Há um espírito de romance em João & Maria justamente porque os personagens formam tipos, expressam em seus destinos concretos tendências da realidade social contemporânea, particularizam os movimentos de um objeto real, colocados pelas relações da modernidade atual. Desse modo, há uma brecha para que possamos, ao lado de Guto Leite, afirmar o espírito de romance que consta nas coroas, o que as engrandece ainda mais.
Não há como exagerar na beleza de João & Maria. A propósito da obra de Antunes, podemos ler novamente de Guto Leite: “saem saciados do livro tanto os leitores que buscam a fina realização poética, quanto os que esperam a representação borrada e vivaz de um mundo em construção – não são qualidades opostas”4. Portanto, a literatura de Antunes busca perpetuar-se historicamente ao coagular em suas formas um conteúdo que diz respeito à nossa particularidade. É uma busca que visivelmente obtém sucesso. João & Maria é uma coletânea de poemas que deve ser lida no século atual e nos próximos como a imagem poética da tragédia que experimentamos. Assim sendo, enfim, a sua publicação configura-se num marco, numa fronteira que divisa alguns territórios da poesia brasileira. Resta-nos pouco a não ser a espera atenta, a vigília esperançosa por novas publicações de Leonardo Antunes.
ANTUNES, Leonardo. João & Maria: dúplice coroa de sonetos fúnebres. São Paulo: Patuá, 2017.
LUKÁCS, György. Estética I: la peculiaridad de lo estético. Barcelona; México, DF: Grijalbo, 1966. 4 v.
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3 LEITE, Guto. Resenha de João & Maria: dúplice coroa de sonetos fúnebres. Disponível em https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/79917. Acesso em 08/09/2019.
4 LEITE, Guto. Resenha de João & dúplice coroa de sonetos fúnebres. Disponível em
https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/79917. Acesso em 09/09/2019.
Ranieri Carli, 42 anos, professor da Universidade Federal Fluminense e crítico de literatura, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta, autor de Toda Estupidez, de 2019, editado pela Autografia. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve. Pretende com poesia sugerir algumas reflexões sobre os problemas que experimentamos nos dias atuais.
E-mail: raniericarli@gmail.com
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