ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a escritora Yasmin Bidim

LIVRO YASMIN BIDIM - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a escritora Yasmin Bidim

 

 

FERNANDO – O espaço interno do eu parece ser não seu tema, propriamente, mas a própria arte de criar a partir de nossa internalidade. Nossa memoriamobília interior  provém de vários itens de mobiliar àquilo que talvez a psicanálise chame de ego, mas que na poética nossa de cada dia, possa ter outro nome, ato criativo de ser e estar. Fale sobre isso.

YASMIN – Penso que o ato de escrever poemas, para mim, funciona como uma atividade de “colocar as cartas na mesa”. Tem a ver com organizar as sentimentos e os pensamentos, nesse sentido essa abordagem dos itens de mobiliar faz sentido. São ideias, afetos e perceptos em movimento que estimulam a criação poética. Que para mim, na prática, funciona como uma atividade organizada em torno da linguagem cuja principal operação é trazer a tona justamente uma negociação de consciente com o inconsciente, daquilo que eu imagino que eu sou – o ego – com aquilo que eu não tenho controle sobre mim. É como se no momento de escrever o poema houvesse, primeiro, uma luta interna entre os diferentes eus que nos habitam, e por fim, um acordo que é a realização do poema em si. Não um acordo do tipo “é isso e não aquilo”, mas sim de “é isso e aquilo e aquilo outro”. O famoso acordo discordante.

 

FERNANDO – Há um deslocamento referencial e mimético sobre leituras suas com pequenas citações a outros textos? Num exercício muito lúdico e prazeroso sobre o próprio hábito de ler. Como é seu processo de ler?  Arrastar cursores sobre a escrita.

YASMIN – Há sim. Há cerca de quatro anos eu tomei consciência de quanto a internet, as redes sociais e os dispositivos penetravam em todos os aspectos da minha vida. Sei que isso é um fenômeno do nosso tempo. Mas em mim isso batia de uma forma estranha. Eu decidi que precisava ocupar mais espaço físicos, fazer mais coisas fora dos ambientes virtuais e fora das telas. A leitura foi o caminho mais orgânico. Embora eu seja desde criança uma pessoa que tem a leitura como hábito ela estava longe de ser uma prática orgânica do meu dia a dia. Eu me disciplinei, então, para voltar a ser alguém que lê. E tenho lido, então, de maneira mais intensa nesses últimos anos. Como uma prática mesmo, como hábito, como uma maneira de preencher o tempo fazendo algo que não esteja sob o signo da produtividade e do trabalho. Eu costumo ler vários livros ao mesmo tempo. Poesia, quase que diariamente. Alguma ficção em prosa, um romance, um livro de contos. E algo de filosofia ou teoria. Para além disso eu trabalho pesquisando, então leio também livros e artigos relacionados à minha pesquisa. 
Na escrita acaba aparecendo muita coisa do que eu leio. O que eu estou lendo de poesia no momento acaba influenciando na forma dos versos que escrevo. Os textos de filosofia também tem bastante impacto na minha escrita e os poemas acabam servindo como espaço de elaboração de reflexões e conceitos ou mesmo uma forma prática de retrabalhar alguma frase ou palavra que fica impregnada na memória.

 

FERNANDO – Gostei dos espaços das imagens que falam ou internalizam relações de dentro ao entorno. Como foi através de sua linguagem falar desta relação de alteridade entre o dentro e o fora?

YASMIN – Eu me entendo como uma pessoa muito ensimesmada. Talvez por conta de trabalhar sozinha, de passar muito tempo em casa sozinha estou sempre entretida com meus próprios pensamentos e angústias e muitas vezes me vejo perdida num fluxo de pensamento labiríntico. É um processo quase que obsessivo, que causa muita ansiedade. No poema eu consigo um meio para elaborar esse fluxo muitas vezes, mas sem um compromisso ou expectativa de resolver algo, se sair da angústia. É como um ciclo: o que está fora me desperta um estado de obsessão da consciência, eu escrevo e crio um objeto que é novamente algo externo. Não há resolução de conflito algum, mas as coisas podem se mover, de fora pra dentro, de dentro pra fora. Muitas vezes o que importa nem o que está escrito no poema, mas somente o haver poema já o bastante. 

 

FERNANDO – Há um humor que parece que brinca com o próprio prazer das palavras, como se o sentido fosse sempre uma relação de troca com quem lê e escuta.  Há também muito de solitude neles? Fale um pouco disso.

YASMIN – De fato eu tenho consciência que esse livro é, em grande medida, um diálogo comigo mesma. Claro que se pode dizer isso de todos os livros. Mas não tive uma preocupação sobre a recepção desses poemas. Sei que eles se inscrevem em frequências muito específicas que talvez não façam sentido pra muita gente. Mas esse foi o livro possível nesse momento. E creio que ele seja fundado numa vontade muito grande de dizer algo, de ser lida, de ser vista pelo outro, mas não necessariamente esse desejo implica na compreensão, no sentido. Ou melhor, não implica num sentido específico, único. Algum sentido sempre há. E mesmo a falta de sentido diz algo sobre quem diz e sobre quem ouvo. Então, invariavemente, algum sentido se cria. Essa semana eu li um poema da Ana Martins Marques que parecia ter sido escrito para mim, fez um sentido absurdo naquele momento específico. Mas saber que ela escreveu aquilo pensando, obviamente, em outra coisa que não em mim é fantástico. É quase que literalmente viver a outridade. Aquilo era eu e também era ela. Aquilo era totalmente meu mas totalmente dela. 

 

FERNANDO – Cite poetas que você curte, e fale um pouco da relação afetiva do seu livro com este(a)s poetas em questão?

YASMIN – Quando eu li O Livro das Semelhanças de Ana Martins Marques algo mudou. Eu já estava escrevendo há alguns meses, sem pretensão de escrever um livro, apenas como uma prática descompromissada e um desejo. E o que ela diz ali é muito forte. É muito simples e direto. As imagens. A coisa da casa, me vejo em tudo ali. Também teve a Matilde Campilho, que bateu de um jeito forte e trouxe uma novidade, uma empolgação, esse imaginário português. E a voz dela é um poder à parte. Me encanta demais. Esses dois livros, junto ao Cartas à um jovem poeta, do Rilke, eu volto sempre, não se esgotam. Outras duas poetas mas que são também cantoras que ouvi muito no período em que escrevi esses poemas é a Letrux e a PJ Harvey. Letrux, quem tem um livro genial, engraçadíssimo, o Zaralha, me inspira muita nessa coisa do humor. Ela é engraçada mas é deprê também. Por enquanto eu acho que sou mais deprê, mas queria ser mais engraçada. A PJ é quase uma entidade na minha vida, eu ouço sua música com num ritual, toca camadas profundas do meu ser que nem sei explicar. Por fim tem a filosofia que pra mim é poesia também. Li muito Deleuze enquanto escrevia o livro e isso impactou com certeza, é uma maneira de ver o mundo que me traz esperança, que me faz acreditar no que vejo. Quando eu já tinha praticamente terminado o livro eu li Recusa do não-lugar, do Juliano Garcia Pessanha e ao mesmo tempo a Paixão segundo GH, da Clarice. Foi um golpe. Algo bateu forte e mudou de novo. Escrevi vários poemas muito estimulada por esses dois livros. 
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