ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a poeta Divanize Carbonieri

 

divanize x - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a poeta Divanize Carbonieri

 

 

FERNANDO – Teus poemas têm a força de um redemoinho, há ali alguma entropia circular onde as paredes do poema parecem vibrar de calor tanto com relação do sentido e sua fisicalidade, onde você sabe magistralmente os lugares dos versos, o som, o ritmo e suas distâncias que também estabelecem este trajeto circular. Minha pergunta é como foi tracejar estas relações entre o espaço semântico do poema para que torne-se este redemoinho.

DIVANIZE – Eu sempre busco no poema uma tensão, que de repente pode ser entendida como essa espécie de força centrípeta que você está falando. Algo que faça com que os elementos que compõem o poema se aglutinem num centro, que a força de cada elemento alimente a força central do poema. Então, enquanto eu estou escrevendo, fico buscando esse momento em que se dá essa tensão, em que essa força se coloca. Mas claro que não é sempre que se consegue. É mais uma busca constante. Quanto à questão da sonoridade, parece que, no momento de criar, existe um certo encadeamento dos sons. Um som vai trazendo outros semelhantes. Eu costumo brincar, dizendo que as sílabas vão dançando na minha cabeça, o
som das consoantes e vogais vai passando de um par a outro, como se fosse uma dança mesmo. Então, eu gosto muito de aliteração e assonância, que muita gente acha hoje que são recursos ultrapassados, talvez. Mas o poema já é pensado assim por mim. Não tem muito como eu evitar. Escrever o poema, para mim, é ser tomada por essa pequena sinfonia de sons.
O ritmo eu busco intuitivamente, a partir do ouvido, porque, enquanto estou escrevendo um poema, o leio várias vezes em voz alta, gravo no celular as leituras conforme o texto vai se transformando e ouço até achar que aquele ritmo está fluido, até me agradar de alguma maneira.

 

FERNANDO – Percebi uma tessitura do trágico em muitos cernes dos seus poemas. Seria uma dança onde as relações entre criação e destruição parecem que invés de se negarem, elas polarizam forças entre luz e escuridão, força-ação e inércia. E não há um discurso político, ou até filosófico, a reação é feita por fenômenos? Puramente ópticos-poéticos ou não?

DIVANIZE – Um dos temas mais recorrentes no meu trabalho é a presença constante da morte, do fim de tudo que existe. E esse é o lado trágico da vida. No final, todos vamos morrer e até lá vamos perdendo tudo que amamos porque a vida é uma sequência interminável de perdas. Mas acho que também surge, em muitos poemas meus, a sensação de que algo permanece. No livro A ossatura do rinoceronte (Patuá, 2020), que você leu, tem muito essa questão do osso como o que sobra quando um corpo humano ou de animal se decompõe. E eu sou muito fascinada por esses avanços da ciência, que consegue obter do osso várias informações sobre aquele ser: o que comia, se era sedentário ou não, quanto tempo viveu, o sexo. Hoje em dia eles conseguem até saber qual era a cor da pele e dos olhos da pessoa, a configuração aproximada do rosto (nas reconstituições de faces de esqueletos que se tornaram comuns). Então, o osso é esse arquivo em que tudo isso fica guardado a respeito daquela trajetória de vida. É muita coisa que fica registrada, mas não é tudo a respeito da pessoa ou animal. Não dá para saber o que a pessoa pensava, que sonhos tinha, que medos a assaltaram. Isso o osso não grava, isso se perde para sempre ou fica armazenado em algum lugar que, a partir daqui, não temos acesso.
A gente só tem uma intuição de que permanece. Eu vejo A ossatura do rinoceronte como um livro mais lírico, mais reflexivo, enquanto que o Furagem (Carlini & Caniato, 2020), que é um livro que também vou lançar esse ano após o fim da quarentena, é mais político nesse sentido que você está falando. Pelo menos uma parte dele. Ele tem um tom mais furioso. A poeta e editora Ivy Menon, que publicou alguns dos poemas do Furagem na Revista Ser MulherArte, classificou assim, como uma poesia furiosa. E eu acho que ela tem razão. Mas o A ossatura do rinoceronte tem um tom mais melancólico e filosófico.

 

FERNANDO – Como você trabalha o cotidiano que não é algo que engole informações e o traduz em algum tipo de jornal-noticiário. São mais entranhas filosóficas sobre este mundo maluco onde estamos tensos e ameaçados. Como é este trabalho na linguagem para tornar esta mastigação de informações de forma mais subliminar e escavada em seu texto?

DIVANIZE – Para escrever os poemas de A ossatura do rinoceronte, dois princípios me nortearam: observação e reflexão. Basicamente, todo poema que tem ali partiu de elementos ou situações do cotidiano que foram observados por mim e que possibilitam, a meu ver, algum tipo de reflexão sobre a existência. Isso não significa que eu faça notas enquanto estou vivendo minha vida prosaica de todo dia. Não sou uma poeta que leva caderninhos e que anota os pensamentos enquanto está na fila do banco, por exemplo. Isso que todo mundo fala que o escritor deve fazer comigo não funciona. Eu confio muito na minha mente. Não que eu seja uma pessoa extremamente atenta. Na verdade, sou bem distraída, quem me conhece sabe.
Mas sempre acho que a mente vai guardar aquilo que é importante e vai descartar o que deve ser descartado. Não tem necessidade de notas. O que for imprescindível eu vou lembrar. Isso em relação a tudo, mas especialmente em relação à criação. Se a imagem, ideia, pensamento, sei lá, não ficou suficientemente plasmada na cabeça, ela não vai gerar um poema. O poema surge dessas imagens que, por alguma razão, permanecem reverberando. Pelo menos para mim é assim. Daí quando sento para escrever o poema, alguma dessas imagens se apresenta.
Ou não. Mas quando isso não acontece, não tem criação naquele dia. E está bem. O cérebro deve ter lá suas razões para ora trazer uma imagem, ora não trazer. Se fico muito tempo sem escrever, claro que fico angustiada, mas o que se há de fazer?

 

FERNANDO – A biologia tem um caráter não normativo no seu livro, os animais parecem querem falar sobre si como elementos figurativos e não anatômicos. Como um certo hipertexto de relações de constituição que você realiza para falar de que o mundo, estanque, fechado, e binário não pode mais ser linguajado pela arte? A arte não mais suporta o pensamento estreito. Animais híbridos, talvez precisemos de anfíbios nesta conjuntura? Seres com dupla respiração? Fale um pouco das questões levantadas.

DIVANIZE – Eu não sei explicar por que tenho esse interesse na biologia, por que ela aflora tanto nos meus poemas. Várias pessoas já me disseram isso, já perceberam essa presença constante. Não sei explicar por que acontece, uma vez que não tenho formação específica nessa área. Meu conhecimento de biologia vem do que aprendi no ensino médio e do que fui lendo descompromissadamente sobre isso ao longo da vida. O fato é que tenho esse interesse e ele aparece bastante na minha poesia. Uma coisa que gosto de fazer é retirar palavras do campo semântico da biologia e colocar nos poemas, como “esporófito”, “bípede”, “braquidátilo”. Todas essas palavras já usei em poemas. Trazendo a palavra para um campo semântico que não é usualmente o dela, a gente a revigora e ao novo campo semântico também. Fora isso, tem o foco poético na natureza. Uma professora que é minha colega de departamento, a Marcia Romero, já me disse, por exemplo, que a natureza tem uma função simbólica importante na minha poesia, embora eu mesma não seja uma pessoa que goste de ficar imersa num cenário muito natural. Sou um bicho do asfalto. A natureza para mim é metáfora. Mas apesar de ser essa pessoa urbana, eu tenho uma visão animista das coisas. Não acho que o ser humano seja o ápice da evolução, como muita gente pensa. Não acho que somos mais importantes que os outros animais. Na verdade, o ser humano compartilha o mesmo espírito com esses outros seres, assim eu vejo. O que muda é a forma, a conformação do corpo, os atributos. E isso certamente é um bom “assunto” para a poesia.

 

IMAGEM: https://bit.ly/2SfT97G

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial